São Paulo, domingo, 4 de junho de 1995
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Quilombo recebe terra 150 anos depois

AURELIANO BIANCARELLI
ENVIADO ESPECIAL AO ALTO TROMBETAS

Em dois meses, a comunidade negra de Boa Vista do Alto Trombetas -no norte do Pará- deve receber os títulos dos 790 hectares de terras que ocupa.
Será o primeiro remanescente de quilombo a transformar em realidade um direito previsto pela Constituição.
A informação foi dada na semana passada pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), em Brasília.
``Em dois meses, os moradores de Boa Vista terão suas terras tituladas", disse o diretor de Recursos Fundiários do Incra, Antonio Américo Ventura, 56. ``Será o primeiro passo para a legalização de outras terras."
A notícia tem o sabor de uma nova Lei Áurea (que libertou os escravos) e inaugura o que pode ser uma fase de reconhecimento dos direitos do negro no país.
Boa Vista e outras 20 comunidades negras do Trombetas ficam no município de Oriximiná, a 12 horas de barco de Santarém. A boa nova já chegou lá.
No interior da casa paroquial da cidade, 15 dias atrás, nove negros observavam no mapa da Amazônia o curso do rio Trombetas, que nasce junto à Guiana e desce até desaguar no Amazonas.
Um século e meio atrás, seus antepassados fizeram o curso contrário. Remaram durante 60 dias até se esconderem acima das cachoeiras do Alto Trombetas.
Eram escravos que em dias de festa roubavam as canoas e fugiam remando. Ao longo de décadas, foram construindo quilombos às margens dos rios Trombetas, Erepecuru, Turuna e Campiche.
Os negros da casa paroquial participavam do encontro mensal da Associação dos Quilombos Remanescentes de Oriximiná.
Para se reunir na cidade, alguns dos líderes gastaram até dois dias de barco. Do telefone da paróquia, falam com Brasília, Belém e a Comissão Pró-Índio, em São Paulo.
``Já há motivos para se comemorar os 300 anos da morte de Zumbi", diz Silvano Silva Santos, 27, um dos líderes da associação.
Em Boa Vista -vizinha de Porto Trombetas e a seis horas de barco de Oriximiná-, os moradores aguardam em clima de comemoração. Um grande barracão já foi coberto com folhas de palmeira à espera da festa.
Além de Boa Vista, técnicos do Incra começaram estudos de campo em cinco outras comunidades. A dificuldade -diz a antropóloga Lúcia de Andrade, da Comissão Pró-Índio- é que o Incra mede as terras por módulos cultivados.
Mas os negros do Trombetas vivem dos rios e do extrativismo, como os índios. Costumam se deslocar horas de barco para recolher castanhas-do-pará, pescam em lagos da região e caçam como seus bisavós. Uma pequena roça de mandioca garante a farinha.
``O desafio não está mais em provar a origem das comunidades", diz Lúcia. ``Mas em ver respeitado seu modo de vida."
As 21 comunidades da bacia do Trombetas têm cerca de 7.200 pessoas. Oito comunidades do Baixo Trombetas, onde há 3.200 moradores, demarcaram uma área de 90 mil hectares.
Cinco outras do Alto Trombetas estão reivindicado 270 mil hectares, além dos 790 hectares de Boa Vista.
A soma dessas três áreas equivale a quase 2,5 vezes o tamanho do município de São Paulo.
Em Brasília, a senadora Benedita da Silva (PT-RJ) apresentou no mês passado projeto de lei regulamentando o artigo da Constituição que garante terras aos remanescentes de quilombos.
O projeto define quem tem direito à terra e como a posse se dará. Deve ser votado até o final deste ano.

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