São Paulo, domingo, 4 de junho de 1995
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O HOMEM DE FERRO

WILSON BALDINI JR.
DA REPORTAGEM LOCAL

Você já assistiu a algum filme de Bruce Lee? Nele, o ator/lutador bate em vários adversários em uma única cena.
Coisa de cinema? Pois um baiano de 1,86 m, 104 kg e 24 anos mostrou que isso é possível.
Francisco Alves Filho, chamado de Chiquinho, em 18 de março passado, realizou cem lutas seguidas em Tóquio. Foram duas horas e meia de combate, contra cem adversários diferentes.
As lutas tiveram duração de 90 segundos e, a cada 30 combates, Chiquinho teve um descanso de dez minutos para trocar o ``doughi" (quimono).
Para piorar, a modalidade de Chiquinho, o kyokushin, é disputada sem protetores -utilizados, por exemplo, no caratê tradicional e no tae-kwon-do.
Chiquinho não perdeu nenhum duelo. Venceu 76 lutas, 64 por nocaute, e empatou as 24 restantes. ``O juiz só consideraria derrota se eu apanhasse muito", disse o lutador. ``E isso não aconteceu", completou orgulhoso.
No dia seguinte, o lutador teve disposição para passear na Disneylândia de Tóquio, acompanhado do técnico Ademir Costa, 34, e da namorada Kátia Kuwahara, 26.
``Foi bom para relaxar um pouco", justificou.
No mesmo dia da ``maratona" de Chiquinho, o bicampeão japonês e quinto no ranking mundial do kyokushin, Kenji Yamaki, também enfrentou o desafio.
Yamaki, que derrotara Chiquinho no último Mundial da modalidade, em 1991, por tameshiwari (quebrou mais tábuas, parâmetro para desempates), ficou quase um mês hospitalizado.
Hoje, Chiquinho é favorito no 9º Campeonato Brasileiro de Kyokushin, que será disputado no ginásio poliesportivo do Ibirapuera, na zona sul de São Paulo.
O lutador tenta o tetracampeonato numa competição de apenas um vencedor -a modalidade não é dividida em categorias de peso e, ao final da disputa, aponta um único campeão.
No total, 76 lutadores estarão disputando quatro vagas para o Mundial de Kyokushin, previsto para novembro, no Japão, e o próximo objetivo de Chiquinho.
Os combates eliminatórios acontecem a partir das 9h. As finais estão previstas para as 14h.
Chiquinho diminui o rótulo de ``homem de ferro". Afirmando que a concentração mental é mais importante que a força física, o lutador não se considera uma pessoa violenta, tampouco masoquista.
``Você tem que aprender a conviver com a dor", diz o lutador, que pretende ser, em novembro, o primeiro ocidental campeão do mundo de caratê kyokushin.
E, caso tenha êxito, viabilizará um convite para estrelar um filme no Japão.
Um novo Bruce Lee? Nunca se sabe. O ator sueco Dolph Lundgren, de ``Rocky 4", chegou às telas através do kyokushin, estilo em que é faixa-preta segundo grau.
Já o escocês Sean Connery aprendeu o estilo para atuar na série 007, que o tornou mundialmente famoso.
A seguir, os principais trechos da entrevista que Chiquinho concedeu à Folha.

Folha - Você se considera um ``homem de ferro"?
Francisco Alves Filho - Sou uma pessoa igual a qualquer outra, com defeitos e virtudes.
Folha - Mas fazer cem lutas seguidas e se sair bem não é um feito comum.
Chiquinho - Qualquer um pode fazer o teste. As pessoas ficam assustadas com a quantidade de lutas, mas o importante é atingir um alto grau de concentração.
Muitas vezes, por exemplo, me sinto fraco no momento de uma luta, apesar de meu físico ser privilegiado.
Folha - Como assim?
Chiquinho - Não adianta você ter somente força física. Treinar oito horas por dia durante 15 anos deixará qualquer um forte. Quando duas pessoas atingem o mesmo nível físico, o diferencial é a preparação mental.
Folha - Em que isso ajuda?
Chiquinho - Em um esporte no qual o contato físico é constante, é importante que você saiba conviver com a dor. Minha sensação de dor é a mesma de qualquer pessoa, mas meu desejo de vencer faz com que eu supere isso.
Folha - Parece masoquismo...
Chiquinho - É (risos). Mas não tem jeito. Você precisa se acostumar a sentir dores fortes. Lutar com uma costela quebrada, clavícula fora do lugar, tudo deve ser encarado com naturalidade. Só assim você consegue vencer.
(No kyokushin, não é raro um lutador prosseguir combates com contusões graves, até mesmo com fraturas).
Folha - E no kyokushin não existe divisão de peso nos campeonatos...
Chiquinho - Mas é aí que está a filosofia da modalidade. Kyokushin significa o ``estilo da verdade". Significa que você precisa conhecer você mesmo. Saber dos limites do seu corpo, da sua mente e sempre tentar superá-los.
Folha - E os praticantes conseguem esta superação?
Chiquinho - Muitos. O maior exemplo é o Tadeu (Tadeu Cortez da Silva, um tradicional adversário de Chiquinho). Mesmo sendo leve (78 kg), ele consegue encarar e vencer lutadores com mais de 100 kg.
Folha - Você acredita que todos os praticantes do kyokushin tenham esse espírito?
Chiquinho - Poucos. A maioria se contenta com a força física. O kyokushin, assim como todas as outras artes marciais, quando praticado em alto nível, parece um jogo de xadrez, só que com contato. É puro raciocínio e concentração.
Folha - As artes marciais estão perdendo a filosofia de aprimorar o corpo e a mente?
Chiquinho - Não. O problema são os praticantes. As pessoas querem fazer matrícula e sair pelas ruas batendo nos outros. Para isso não precisam entrar em academia.
Folha - Você enfrentaria lutadores de outros modalidades? Um Mike Tyson, por exemplo?
Chiquinho - Dependendo da bolsa...(risos) Brincadeira. Acho que cada um deve ficar na sua. É a mesma coisa que colocar um economista para escrever sobre esporte e vice-versa. Acho que se eu for lutar boxe com Tyson vou cair rápido. Mas se puder usar as pernas, ele não vai encostar em mim.
Folha - Você é uma pessoa violenta?
Chiquinho - Pelo contrário. Acho que gasto todas as minhas energias nos treinamentos. Porque, quando não estou treinando, estou, em geral, dormindo.
Folha - Você colocaria um filho para fazer kyokushin?
Chiquinho - Lógico. Se ele não fizesse, eu o expulsaria de casa (risos). Acho importante, porque você aprende a ter respeito e determinação. Mas só quando ele tivesse uns dez anos. Antes disso, ele deveria brincar um pouco.
Folha - Como foi o dia seguinte ao desafio das cem lutas?
Chiquinho - Fui à Disneylândia de Tóquio, mas não pude experimentar alguns brinquedos por estar machucado no peito do pé direito.
Folha - Esse foi seu único machucado após o teste?
Chiquinho - Tive algumas contusões no peito e nas pernas, mas nada de grave.
Folha - Mas você não estava cansado?
Chiquinho - Tive uma noite terrível. Não conseguia dormir. O corpo ainda queria lutar. Dava socos e pontapés contra adversários imaginários.
Folha - Qual é seu maior objetivo agora?
Chiquinho - O Mundial, que acontece em novembro, em Tóquio. Meu futuro depende de um bom resultado neste torneio.
Folha - O que o título pode proporcionar?
Chiquinho - Além da satisfação de ser o primeiro não-japonês campeão mundial, o título viabilizaria um convite para fazer um filme no Japão.
Folha - Você está preparado para a derrota?
Chiquinho - Sim. Na vida ninguém é eterno. Hoje, as pessoas estão próximas de mim porque estou vencendo, mas basta uma derrota para que eu seja esquecido. E o desconhecido que me vencer se tornará o novo astro.

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