São Paulo, domingo, 4 de junho de 1995
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"Me esparramo carta abaixo, com madonas e deusas de mármore"

Paris, 16 de novembro de 1950
Querido Alvaro,
já era meu propósito escrever a você nesta semana, quando hoje o Roberto me mostrou em sua carta a promessa de carta próxima, para mim. Mas não optei pela espera dela, como a preguiça ordenava, pois tenho coisas para dizer a você, inclusive assuntos em atraso. Por causa da Itália, você sabe.
Desta vez, nossa demora foi mais longa, intensa e esplêndida. Não vou comentá-la aqui, porque essas evocações desmancham meu equilíbrio, me esparramo carta abaixo, com madonas e deusas de mármore, e puxando aquele céu asulasul, seu conhecido, como a gente puxa para si um cobertor, em noite fria.
Chego a sofrer, ter saudade de voltar lá. Ainda desta vez, não consegui incluir no itinerário a Sicília, paciência, mas fui fundo em Paolo Uccello, Pier (sic) della Francesca, Luca Signorelli, Giorgione, e mais procissão. De pintura, estou "cansado mas não saciado.
Comprei vários livros, de técnica e crítica pictural, e vou lendo, lendo como saúva em pé de milho. Mas a escultura e a paisagem não ficaram de fora, não. Lembre-se de PAESTUM, Alvaro. Quando vocês voltarem, não deixem, por coisa nenhuma deste mundo, de chegar até lá. O contato sentimental com a velha Grécia de Minerva e Posêidon abriu-me tão dilatado apetite, que, mal cheguei aqui, precisei de atacar a reler ``Ilíada" e ``Odisséia", mas linha a linha, anotando, e, principalmente, amando aqueles longos espaços encantados, ouvindo o chocar dos bronzes ou me perdendo a ver aquele mar dos mares, cor de vinho, do qual emergem deuses "como gaivotas sobre a asa... Enfim, Perúgia, Ravena, Orvieto, Arezzo... E basta de discorrência, que, sempre que me toca falar das coisas belas daqui deste lado, tenho também o vago remorso de estar tantalizando você fora de hora e de medida.
Chegando aqui, vim encontrar à minha espera as provas, enviadas pelo José Olympio. Assim que pude, trabalhei mouramente na respectiva re-revisão (ainda havia ratos -não digo "gatos, porque os gatos são meus amigos, não admito que sirvam para significado menos nobre-; e não pouca coisa), e já recambiei ao nosso editor amigo o pacote, há muitos dias, por avião. Espero que ele já tenha recebido. Junto, enviei-lhe um bilhete, pedindo que me mandasse ainda uma vez a papelada, mas que, desta viagem, não precisava de remeter tudo -apenas as páginas cujos números indiquei em lista, cerca de 1/3 do livro, o que já poupa um pouco das despesas com o porte aéreo.
Mas, Alvaro, você me pergunta se ficou devendo alguma coisa, e o fato é que não me deve nada. Ao contrário, dei o cruel balanço e verifiquei que você ainda tem comigo Frs. 7.932. Resumo o ocorrido: você me mandara 49.777 francos; e eu empreguei só 41.845 francos, assim distribuídos:
Compra de livros...... 37.830 frs.
Porte postal........... 3.615 frs.
Gorjetas................. 400 frs.
(Admire esta meticulosa escrituração!) Assim, logo que você organizar nova lista, podemos recomeçar, com renovada alegria, as compras. Desta vez, espero consigamos portador certo, pois acho uma vergonha você ter pago mais de 10% com o transporte.
Por falar nisso, logo que cheguei, avancei para mandar a você uma novidade saída, "Le Secret de Marcel Proust, mas o nosso magnífico Schmidt já me passara à frente. Não é fácil a oportunidade de enviar-se um proust a um arquiproustiano. E, já que estamos no assunto, digo a você que, depois de chegar das férias, já pude ler, mais uma vez, alguns capítulos da TESE, só para "give myself the pleasure of a third reading. E, ainda hoje, fiquei contente: está aqui o Sergio Milliet, que, em conversa, disse-me ter gostado muitíssimo de seu trabalho; comentamos longamente, a tese, você etc., e alegrou-me ouvir dele palavras de real agrado.
Agora, a respeito do que você bondosamente me escreveu, para arranjar as citações críticas destinadas à capa do ``Sagarana", pensei muito a esse respeito, e só me tenta, realmente, a idéia de pôr apenas duas grandes citações, de dois críticos: você e o Antonio Candido. Que é que você acha? Não é por nada, mas só porque penso que assim ficaria mais compacto, mais sério. Mas sua opinião, como em tudo o mais, é importantíssima. Por mil motivos, esta 3ª edição vai ficar sendo tão sua quanto minha; e, por isso mesmo, há-de ter sorte: a sua estrela, que é poderosa, nela influirá força ascendente.
Pensamos muito em vocês, na viagem. (Diga isto à Heloisa!)
Vocês foram falados, lembrados, pelo menos em dez cidades diferentes. Nunca deixaram de estar conosco, com a saudade como arrière-plan. Que longas e repetidas sessões de conversa estes anos todos não estão preparando, para nós! Quando nos reveremos?...
Mas, Heloisa, Alvaro, -Aracy já me atropela, para enviar os abraços. Os nossos afetuosos abraços.
Com a invariável amizade dos seus
Guimarães Rosas

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