São Paulo, domingo, 4 de junho de 1995
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"Cheguei a flertar com uma bibliopola"

Paris
12 - 49
Alvaro querido,
Uma porção de coisas. Você gostaria de assistir à atividade científica com que está sendo providenciada aqui a sua encomenda de livros. Para definir sucintamente a empreitada, só mesmo em alemão: Organizationsgeist und Leistungfahigkeit! Logo que a vasta lista chegou, bramiu a orquestra, à frente dela o Guimarães Rosa, com alma de gerente e ânimo de madrugador. Para começo, mandei copiá-la à máquina, em três vias, para fazer crescer a graça e a poesia da incumbência, e uma dessas vias foi logo para as mãos do meu livreiro fornecedor -aliás livreira, e aqui vos apresento Madame Mettavant, da Librairie François 1er., que adotei, não por ficar perto da embaixada, mas sim porque lá, com segurança, seremos bem servidos. Com a dita, tive prévia longa conversa, inculcando-lhe eu o maioríssimo interesse, para ver se, depressa, depressa, conseguia ela arranjar todos os livros da relação.
Bem, o tempo de Natal atrasou um pouco as démarches, mas ontem recebi os primeiros 65 volumes. São os da faturazinha anexa. Conferi verificando até que havia dois a mais -a primeira e a segunda parte de "Les Chemins de la Liberté, de J.P. Sartre,- os quais restituí incontinenti o que explica a redução de 820 frs. no preço total da batelada.
Em seguida, cancelei na lista os números recebidos, e fiz preparar lista nova, que já está funcionando. Nesta segunda fase, a iniciar-se nas primeiras horas da manhã do dia 3 (o dia 2 é aqui feriado), Mme. Mettavant (veja como há nomes bem adequados) desencadeará lúcida ofensiva nos "sebos. Não duvido da boa vontade dela, oh velho, porquanto, por sua causa cheguei hoje até a flertar com a bibliopola, veja! Mas, além disso -e então será a terceira etapa, sairei pessoalmente em campo, devasssando, numa espécie de batida policial, tudo quanto for "sebo, buquinista alfarrabista, livreiro-belchior, antiquariato e pergaminheiro, na "Rive Gauche, e na "Rive Droite. Serei capaz até de ir tentar o furto em bibliotecas públicas.
Agora, Alvaro, há o assunto da remessa. A solução mais simpática, que é a que você lembrou, não está sendo fácil, no momento. Com o começo do frio, os brasileiros escasseiam por estas plagas, você sabe, e, assim, o que até há pouco seria coisa "sopa, pode ficar sendo um problema; um tanto tolo, mas problema. Naturalmente, fico vigilantíssimo, à espreita. E, como o nosso Roberto, mais dinâmico e associativo, mexe com muito maior número de pessoas, meti-o logo no assunto. De parceria, estamos estudando o movimento de saída e chegada de compatriotas. Os que temos tido, ultimamente, são passageiros de avião, os chatos.
Não interessaria a você, a bem da urgência, que os 65 volumes já em meu poder seguissem pelo correio comum, como impressos, sob registro, da mesma forma por que remeti aqueles da encomenda Pedrosa? Aliás, para preservá-lo, já os fiz embrulhar convenientemente, em pacotes de peso não excedente de 2 quilos (regulamento postal), para, em último caso serem enviados daquele modo. Deram 13 pacotes. O preço do porte será à peu prés, 235 francos por pacote, está-me informando o Marcel, nosso huissier-mór. Os livros que tenho enviado assim, para pessoas no Rio, em Belo Horizonte e São Paulo, todos até hoje chegaram normalmente. Acho que assim sai mais barato e muito mais rápido do que se mandarmos num caixote, e despachado. Que diz você? Naturalmente, até o último instante, estarei buscando portador de confiança, o que será providencial e o ideal. Mande-me uma palavra, sobre isto, hein, pois o elemento que estou levando primeiramente em conta é o da urgência, pressa.
Quanto ao mais, Alvaro, acredite que é para mim um prazer, de verdade, poder prestar essa minúscula ajuda a você, tanto mais que eu mesmo já comecei a "torcer -emocionado, um tanto, mas perfeitamente seguro de seu sucesso no concurso. Nisso, como em tudo o mais, que acompanhem você seus fados e bons fluidos!
Quanto ao "Sagarana, Alvaro, tudo perfeito, e eu gratíssimo fico esperando as provas. Você é um Arcanjo. Se eu não fosse já crismado, convidaria você para meu padrinho. Quanta coisa, quanta amizade! Acho ótima sua opinião, a respeito das orelhas e da capa; e, quanto à página inteira, sua, sua e minha, no "Correio, não posso ficar mentiroso, tenho de confessar que exultei, delirei, quase chorei de entusiasmo e alegria quando li essa passagem de sua carta. Deus te pague! diria eu; mas, com relação a Deus, sei que você é um tanto "titista. Vou ver se arremato alguma coisa para o Suplemento, porque sua sugestão é acertada; acho, porém, que isso ainda ficará melhor "em cima da hora, isto é, no momento em que o livro já esteja nas vitrinas. Em todo o caso, Alvaro, acerca da publicação das cartas, talvez seja melhor, na ocasião, você mandar-me a carta grande, e os trechos que você selecionar das outras, a fim de que eu faça uma revisão última, com algum pequeno expurgo. Não seria prudente? Desculpe-me tanta hesitação, tanto me-deixe.
Também, aqui faz frio; há dois dias que Paris se enrola num grosso nevoeiro, amarelado, que os indígenas chamam de "purée de pois, mas que iguala o fog londrino; e eu não estou em Florença, nem em Veneza, nem mesmo na "carina Pisa... Tenho estudado Dante, no italiano; com as fartas notas de pé de página, não é difícil, experimente; e vale a pena, se vale!, ali tenho descoberto ou re-descoberto muita coisa. Fora da "Divina Comédia, a última coisa que li foram dois romances de Graham Greene: "The Power and the Glory e "The Heart of the Matter. Gostei muito. Você já leu Evelyn Waugh? Só conheço dele "Brideshead Revisited. Gostei, mas muito menos. Não sei se estou certo ou não, mas penso ter encontrado em Gr. Greene influência forte dostoievskiana, e localizado várias ilhotas proustianas no livro de Ev. Waugh acima citado. Sem querer nem poder, será que estou fazendo crítica literária?
Recebi um cartão afetuoso do Braga Montenegro, de Fortaleza ("Uma Chama ao Vento, você sabe). Ele me diz que seu romance "Jereraú vai sair no primeiro semestre de 1950, e que será dedicado a três pessoas, sendo eu uma delas. Simpático. Por aqui, não tem surgido grande coisa. O Goncourt -"Week-End à Zuydcoot- não acrescenta nada, e não borbulha.
Mas, Alvaro, quando eu começo, é a lengalenga velha, seja em conto, em artigo ou em carta. Você não tem muito tempo para missivas extravasadas, e aqui, pois, cesso. Só mais isto: comecei a escrever alguma coisa devagar, não sei bem se dará o que preste. Vou parar com as leituras que me estavam tomando muito tempo.
Acho que nem mandamos ainda a vocês nosso abraço de Boas Festas, e seu cartãozinho chegou aqui. Mas as saudades são constantes, são sinceras; presentes ou ausentes, Heloisa e você nunca param de crescer e progredir a amizade da gente, é como dinheiro posto a prazo fixo. Assim, meus caros, Aracy e eu comparecemos, com um enorme buquê de votos: que 1950 seja para vocês um ano alegre e importante, verdadeiramente um ano com o valor de meio século!
E o forte abraço do seu
Guimarães Rosa

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