São Paulo, domingo, 4 de junho de 1995
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"Queremos voltar à terra, pisar o chão"

LEONARDO BOFF
ESPECIAL PARA A FOLHA

O desejo tem mil valências, é uma fonte que pode ser canalizada em mil direções. O desejo, como Eros, como energia vital, busca a unidade. Eu me recordo do mito grego mais ancestral: a noite casa com o caos e disso nasce o ovo cósmico. Do ovo cósmico nasce Eros, que traz a primeira divisão, as duas cascas do ovo, que são o céu e a terra. Eros une os dois e cria todo o tipo de diversidade, enche o universo de mil seres, mil paixões, mil cores e ao mesmo tempo é capaz de unir toda esse diversidade criando unidade.
Eros, o desejo, é por isso algo divino, anterior ao céu e à terra. Eros remete a algo mais profundo, a que as religiões chamaram mistério, Deus, Alá, nirvana, não importa o nome. Não é sem razão que o cristianismo dá o nome de maior excelência a Deus, dizendo ``Ele é amor". (...)
O estado amoroso é erupção da eternidade no tempo. Para os dois enamorados, não há passado e nem presente e nem futuro. Já os velhos gregos diziam que o amor é algo divino. Os cristãos diziam que não é algo divino, é Deus mesmo, que rompe.
Se nós quisermos saber o que Deus é, ele acontece nas energias que se encontram na erupção vulcânica da paixão humana, no aflorar do amor humano. Se deus tem um nome, é isso, esse acontecimento é Deus. (...)
O ser humano tem uma ancestralidade de milhões de anos. Dentro de nós está o fragor das galáxias que se chocaram, da explosão das estrelas novas que criaram todos os sóis, as galáxias do universo. Somos herdeiros de todo o frêmito da vida e do universo. Uma célula da minha mão contém o código genético de todo o mistério da vida. (...)
No momento em que aparece, o poder trabalha a culpa como uma forma de controle do ser humano. Se o homem não se agarra a uma divindade ou aos representantes dessa divindade, no caso igrejas, sacramentos, ritos, ele está perdido. Então, cria uma enorme dependência de superegos castradores que podem ser o pai ou a mãe e, fundamentalmente, a religião, que aterroriza as consciências. Há certas religiões e igrejas que precisam do pecado para poder viver. Porque, se desaparece o pecado, elas perdem sua função. (...)
Está emergindo um sonho, o sonho da terra. Estamos cansados de holofotes, flores de plástico, ar refrigerado, o mundo de segunda e terceira mão.
Queremos voltar à terra, pisar o chão, comer os nossos legumes naturais, sentir o vento e a chuva, descobrir que nós somos seres cósmicos, uma redescoberta da terra, uma nova esperança, uma nova aliança coma terra. (...)
Tudo bem televisão, Internet. O problema é quando a nossa cultura diz: se você não tem isso, você não conta, você não é. O problema é só Internet, só televisão, só esse mundo de segunda e de terceira mão. (...)
O desejo da burguesia é fazer do Brasil um país moderno, cheio de carros importados, cheios de vídeos, de novos televisores, cheio de uísques. Só que ao preço de uma enorme exclusão. Esses são os filhos dos escravocratas que sempre viram no pobre e no negro alguém que nem merece ganhar salário mínimo, porque sempre trabalharam de graça e são preguiçosos, carvão para ser consumido na máquina produtiva. (...)
O carro importado é um fetiche, um sinal que diz: nós queremos nos inserir no mercado mundial, mesmo de uma forma subalterna, secundária. Este é um projeto que domina fatias importantes do poder, hoje, inclusive do governo. Mas há um outro projeto, um outro desejo, que foi sempre negado, de milhões de brasileiros, de mais de dois terços dos brasileiros, que vem da grande tribulação, a quem se negou comida, trabalho, casa, terra, saúde e que sempre lutam e esperam. Aí há um desejo que nunca morre, mas sempre é frustrado e sempre ressuscita, de que o Brasil seja para todos e não só para alguns. (...)
Aqui convivem as raças todas com uma relativa harmonia, que se revela na forma como comemos. Nós não temos, digamos, discriminação de pele. Há discriminação social, se é rico, se é pobre, mas a pele, não. O mulato é exaltado. Estamos antecipando aquilo que será o futuro da humanidade globalizada, que vence os seus limites culturais, geográficos e se dá conta que é uma espécie, a espécie humanidade.

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