São Paulo, domingo, 4 de junho de 1995
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Negros buscam unidade imaginária no orfanato americano

ESPECIAL PARA A FOLHA, DE NOVA YORK

A comunidade negra norte-americana tentou aparentemente inventar outras identidades de grupo. A mais recente e mais falada é a islâmica.
A história da Nação Islâmica esteve na ordem do dia, com a recente suspeita de que a filha de Malcolm X teria tramado o assassinato de Louis Farrakhan, herdeiro de Elija Muhammad, para vingar seu pai que -presumivelmente- foi liquidado pela própria Nação, da qual fazia parte.
Em geral, apesar das melhores intenções, estas pretensas identidades coletivas são histórias para dormir. É evidente que os negros escravos não eram islâmicos em sua maioria, e de fato o Islã foi, na África negra central e ocidental, no mínimo tão imperialista quanto, mais tarde, o missionarismo cristão.
Mas estas histórias são contadas para convencer órfãos, forçosamente esquecidos de suas origens -além da perda comum que jogou a eles todos no mesmo orfanato americano-, que, talvez, eles compartilhem um passado e uma família comuns. E por que não?
Salvo que estas histórias para dormir (entre as quais a da filiação islâmica) encontram sucesso por serem escolhidas e inventadas justamente segundo a raiva fundamental compartilhada pelas vítimas.
Assim, a escolha do Islã -o inimigo cultural mais consistente da tradição ocidental e a mais antiga tradição de escravatura- é só uma variação sobre o elementar desejo de vingança. Trata-se de inverter a opressão, não de aboli-la. Que a escravatura continue, e o mestre se torne escravo.
Deste modo, infelizmente, a nova identidade proposta é tão desagregadora quanto a simples memória da violência sofrida: a razão de estarem juntos continua não sendo uma regra, nem uma tradição comum, nem propriamente uma história; é só a lembrança da dor. A vida social que esta razão comunitária permite só pode ter, como regra, a violência real.
Na relação com o mundo dos brancos, é o revanchismo, o vitimismo, ou os dois. Não há pacto social praticável, só uma conta pendente. Direitos e oportunidades oferecidos ou conquistados são recebidos como apenas um arras sobre a impossível compensação do trauma fundador.
Na relação entre irmãos da mesma mãe escravatura, as coisas não são melhores. Quando o patrimônio cultural de um grupo se reduz à violência (sofrida ou infligida, tanto faz), as relações que lhe é dado organizar em seu próprio seio dificilmente invocarão outro princípio. Perguntem justamente a Malcolm X.
Para uma comunidade assim fundada e minoritária, o destino é a exclusão do tecido social e provavelmente um extermínio progressivo que nem precisa da mão dos opressores. Ele é administrado, nos guetos urbanos, pelo próprio grupo.

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