São Paulo, domingo, 4 de junho de 1995
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A encarnação do desejo

CONTARDO CALLIGARIS
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE NOVA YORK

No fim do ano passado, a revista do "The New York Times escolheu como tema da semana os problemas do homem negro norte-americano. A situação é de fato espantosa: uma esperança de vida média -nos guetos- muito reduzida, uma taxa de desemprego que é o dobro da dos brancos e, ironia final, um nível de remuneração (a paridade de qualificação) inferior ao da mulher, branca como negra. Por quê?
Seis intelectuais negros foram convidados a responder e debater. Na discussão, William Julius Wilson, da Universidade de Chicago, observou que as dificuldades de emprego dos homens negros americanos talvez derivem de uma especificidade do trabalho moderno. Cada vez mais empregos implicam uma relação com o público. E "há a impressão que... os consumidores prefeririam não ter que lidar com homens negros... Há uma imagem pela qual os homens negros são ameaçadores, perigosos e que as pessoas prefeririam não entrar em contato com eles. Sua observação não foi retomada.
Mas a questão da imagem do negro norte-americano, marginalizada assim no debate, explodiu na capa da revista. O editor escolheu uma nuca. A intenção talvez fosse evitar a escolha de um indivíduo só como representante do grupo. Mas o resultado é uma espécie de fotometria invertida e evoca o anonimato dos rostos negros que desfilam na crônica criminal do noticiário das 23h.
Os rostos negros, aliás, como os policiais frequentemente verificam, são, para os brancos, todos iguais ou quase, como nucas ("era negro, dizem as testemunhas...). Pior ainda, a imagem escolhida condensa um catálogo de imagens ameaçadoras do homem negro. Um pescoço maciço no estilo Mike Tyson, boxeador e suposto estuprador; uma cabeça raspada, estilo rap urbano; um brinco na orelha esquerda, que sugere tanto a violência do pirata quanto uma equívoca polivalência sexual: o macho negro come a todos, homens e mulheres.
Uma resposta à pergunta colocada aos convidados da mesa-redonda está, então, aí, na capa: o estereótipo ameaçador, violento e erótico, que o negro norte-americano se tornou.
"The Black Male "
No começo deste ano, o Whitney Museum of American Art de Nova York propôs uma exposição notável que foi largamente debatida pela imprensa norte-americana: "The Black Male , "O Homem Negro - Representações da Masculinidade na Arte Contemporânea Americana.
Thelma Golden, a organizadora, reuniu obras de 30 artistas plásticos das últimas décadas, brancos e negros, todos interrogando a imagem do homem negro na América de hoje. Uma vasta seleção de vídeos e filmes sobre o mesmo tema passavam, com programas alternados, na sala de projeção do museu. É possível que a exposição não proporcionasse grandes experiências estéticas. Mas a experiência social e ideológica não era banal.
A começar pelo ``tour", que a cada hora percorria a exposição, fornecendo as explicações ideológicas das obras. Quando visitei, ele era guiado por uma jovem mulher branca, a qual explicava, portanto, a uma assembléia de homens e mulheres prevalentemente negros que o povo deles tinha sido constrangido a jogar um número limitado de papéis codificados: o macho, o criminoso, o malandro, o artista, o ``star" do esporte, o dançarino...
Havia no discurso (certamente nada improvisado) da jovem guia, uma sorte de expiação, uma culpa confessada. Também havia no olhar dos visitantes negros uma perplexidade, pois as obras pareciam convidá-los a uma crítica de suas próprias imagens, pediam que questionassem uma galeria de espelhos.
Adrian Piper, uma artista negra, nos anos 70 se vestiu de homem negro, melhor dito se caricaturou -peruca afro, calças boca-de-sino, óculos escuros- e foi passear por Manhattan para sentir na pele a desconfiança, o medo que sua imagem inspirava. Documentou sua experiência se fotografando. Perto da entrada, uma imagem sua, assim mascarada, vinha com o seguinte texto: ``Eu encarno tudo que vocês mais odeiam e receiam".
Na frente da obra, um menino negro estava parado. Olhava e não mexia, devia estar tentando entender. O paradoxo é que ele poderia ser, apesar de seus dez anos, a versão anos 90 da mesma obra: um gorro de lã preta, as calças largas tipo pijama, o casaco de nylon preto...
Planava no ar a pergunta: certo, o negro americano não pode ser só este desfile de estereótipos sociais, mas, fora estas imagens caricaturais, o que é ele então, se não um homem invisível? A mesma pergunta atravessa também os numerosos ensaios que compõem o catálogo da exposição.
Ninguém acredita, naturalmente, na idéia de uma identidade essencial do negro americano. Os negros levados como escravos para a América vinham das mais diversas culturas africanas. Eles se chamam hoje de irmãos, mas sua família comum é só a violência de um trauma inicial, da perda forçada e irremediável de suas origens.
Por isso, aliás, as imagens de violência sofrida por um negro -a fotografia do jovem Emmett Till assassinado nos anos 50 ou o vídeo de Rodney King agredido pelos policiais de Los Angeles- podem, em um instante, sem acordo prévio, mobilizar o povo negro todo, do Oeste ao Leste e incendiar o país. Por isso, uma raiva exasperada é inevitavelmente a emoção coletiva da "nação negra. Porque a violência exercida sobre seus corpos é o patrimônio que compartilham, é a única verdadeira metáfora de sua possível identidade de grupo.
Mas algo parece, apesar desta trágica e impraticável identidade de grupo, socializar o negro: uma eflorescência de estereótipos com os quais ele pode se parecer, sendo assim, se não socialmente reconhecido, pelo menos visto. É esta, aliás, a constatação da exposição: o negro americano se socializa pelos estereótipos que o estigmatizam.
Logo após a abolição da escravatura, como lembra Henry Gates, da Harvard University, no prefácio do catálogo, começou a incrível proliferação da dita "Sambo Art. Cartões postais, saleiros e chaleiras decorados com as imagens de Sambo -o negro irrisório dos racistas- invadiram a intimidade kitsch dos americanos.
Certamente, os antiabolicionistas (mas não só eles) podiam querer manter assim a subordinação social dos negros e, apesar de sua conquistada cidadania, relegá-los no campo de um pitoresco duvidoso. Mas esta vontade de restauração da antiga ordem também encontrava a procura, pelos próprios negros, de algum papel, alguma imagem identificatória para quem já era escravo e se tornava, na verdade, nada.
A escravatura, amarrando os corpos, também proporcionava um sistema, uma ordem, onde, sem serem cidadãos, lhes era reconhecido, se não um lugar social, pelo menos uma função: a de escravos. Os negros não eram alguém, mas eram alguma coisa. No mínimo, valiam algo no mercado.
O fim da escravatura talvez tenha sido mais crítico para os próprios escravos do que para os seus donos. Estes perderam bens. Os primeiros perderam sua significação social, por limitada e intolerável que fosse, sem por isso recuperar seu passado. (Pouquíssimos tentaram a volta para a África; embora ainda sonhe-se com ela, de "Raízes a "A Cor Púrpura, era uma volta impossível, para aquém do trauma, para uma terra definitivamente perdida.)
Se parecer com um estereótipo foi o recurso sobretudo do homem negro. Para ele, parece que a adesão a uma das imagens sociais do negro foi e ainda é a inevitável via de acesso à socialização. Há, por isso, algumas razões.
Em um ensaio incluído no catálogo, Bell Hooks cita um discurso abolicionista do século passado, pronunciado na Convenção Americana contra a escravatura em 1863: "Em todas estas atividades intelectuais que pedem uma estranha aceleração das faculdades morais -os processos que chamamos instintos ou intuições- o negro é superior ao homem branco -ele é igual à mulher branca. A raça negra é a raça feminina do mundo...
Hooks quer mostrar que a hipervirilidade do estereótipo do macho negro é uma espécie de reação à feminização produzida pela escravatura. Tanto ele quanto o abolicionista do século passado têm razão, pelo menos quanto à feminização.
Se, às vezes, receberam o nome de seus donos, ele lhes foi dado como uma marca de gado, sem implicar nenhuma filiação reconhecida. Permaneceram objetos de troca, suspensos em um problemático limbo, imobilizados na dramática viagem entre suas casas perdidas e duvidosas demoras futuras. Este tempo e lugar, sem nome, sem inscrição social, é o mais feminino de todos: seus afetos são a revolta, a reivindicação e, enfim, uma exasperada sedução endereçada ao novo clã eventual.
Muitos africanos que venderam escravos ao mercado transatlântico deviam saber bem que o homem escravo é perigoso. Antes de descobrirem, graças aos europeus, o valor mercantil de seus presos, costumavam geralmente matar os machos e guardar escravas só as fêmeas. As mulheres acabam entrando no novo clã, é sua regra social. Mas aos homens escravos, feminizados à força pela troca de seus corpos e nunca integrados, resta ou se revoltar com violência, ou encontrar um jeito de seduzir o novo clã.
Esta necessidade de sedução poderia aparentemente facilitar o controle social pelo novo mestre. Ele só teria que fornecer imagens, às quais o liberto se conformaria para obter o amor e o reconhecimento do mestre. Salvo que a sedução de um homem -por feminizado que seja- sempre encontrará seu argumento final na ostentação de uma das formas possíveis da virilidade.
Assim, através de uma galeria de estereótipos, o homem negro só pode insistentemente reafirmar sua virilidade desprezada socialmente pelo espetáculo de sua prestança física e sexual. Da violência ao esporte, da fala aos gestos cotidianos, ele reclama a atenção dos brancos para a forma de virilidade que lhe sobra.
Na exposição do Whitney, uma obra de Glenn Ligon propõe, na tela, uma piada. Em breve, um branco pergunta: "Por que vocês negros estão sempre tocando no pau?. Resposta: "Mas é a única coisa que vocês nos deixaram... O equívoco é inevitável: o negro pede respeito, mas só lhe sobra ostentar uma virilidade de carne, e o que ele recebe? No lugar do respeito, desejo. O resultado, aliás, pode ser tentador para ambas as partes.
Fetiche cultural
Nas escolas do primeiro grau, aqui, em Nova York, em estudos sociais, só se trabalha isso: a Guerra Civil, a liberação dos escravos, o que é discriminação, a luta pelos direitos civis nos anos 60, Thurgood Marshall etc, etc.
A história dos Estados Unidos se transforma na história da injustiça da escravatura; os problemas da sociedade americana se resumem na questão negra. Qual estranho efeito esta escolha exclusiva pode produzir nos jovens estudantes negros? Como não se sentiriam erigidos em bichos de estimação, hipostasiados como falos monumentais, intangíveis, merecendo para a vida inteira os cuidados do Pritaneu?
E no Brasil?
O Brasil, paradoxalmente, acabou cuidando ``melhor" -por assim dizer, com ironia- de seus escravos, pois instalou imediatamente condições de miséria e servidão que garantiam uma continuidade. Não precisou tanto que a organização escravagista fosse substituída por uma estereotipia imaginária, pois os escravos obtiveram uma nova função social estável e de miseráveis.
Não que os negros americanos tenham se tornado ricos, mas sua miséria e servidão nunca foram, desde 1870, aceitas e instituídas socialmente. Por isso, precisou de imagens para estigmatizá-los. Assim, o negro brasileiro é definido por sua pobreza, enquanto o negro americano é uma figura, uma imagem virtual.
A imagem brasileira do negro (ginga, samba no pé, balanceado, etc) não é seu estigma social; ao contrário, passou a fazer parte do patrimônio imaginário da nação inteira, foi chamada a integrar a imagem do brasileiro (confere o pé na cozinha do presidente). Efeito da famosa miscigenação, mas também da substituição da escravatura pela miséria, o estereótipo ameaçador brasileiro é o do pobre, do ladrão eventualmente, não do ``Sambo".

Continua à pág. 5-12

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