São Paulo, domingo, 4 de junho de 1995
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Alô, alô, marciano

Há alguns anos a maioria dos economistas, analistas políticos, sociólogos, empresários, líderes sindicais e políticos, enfim, a elite brasileira se debruça sobre a inflação da semana, a eleição seguinte, a rebelião mais recente, o pacote iminente, a greve decisiva.
Já se falou muito em década perdida e não há exagero nenhum em afirmar que o tempo que se perdeu foi também um desperdício de horizontes, uma incapacidade coletiva de descortinar perspectivas. Ou seja, o tempo passava, mas apenas para que se acumulasse cada vez mais passado.
A sociedade brasileira parecia patinar continuamente, sobrecarregada por heranças e entulhos econômicos e institucionais. Ironicamente no país que sempre se imaginou ser o ``país do futuro".
O futuro será sempre insondável, por mais inevitáveis que sejam os exercícios de futurologia. Mas o passado permite, aliás, exige reavaliações. Desde que se esteja sempre alerta para o perigo maior que é contaminar os exercícios de ``passadologia" com o humor do momento ou com a ansiedade cuja obsessão é o dia seguinte.
Se um inglês ou um marciano tivesse pousado no Brasil em 1985 e voltasse dez anos depois talvez tivesse a isenção de espírito para enxergar além do sufoco cotidiano, identificando grandes transformações e alertando os nativos para os riscos do catastrofismo.
Veria em primeiro lugar que a expectativa ainda insegura de democratização, sujeita ao teste da substituição inesperada (e arriscada) de um presidente da República, Tancredo Neves, por outro, José Sarney, converteu-se, afinal, numa democracia consolidada. Democracia forte a ponto de poder seguir seu curso ainda que tivesse que passar por mais um teste decisivo, o impeachment traumático do presidente da República.
O observador distanciado veria também que os movimentos sociais e sindicais, recém-saídos da resistência democrática e aspirando ao poder, dez anos depois exibem enorme vigor, ocupam espaços executivos e legislativos, sem que a ordem social seja ``subvertida", como alguns chegaram a temer no final do regime militar. O mesmo não se poderá dizer avaliando os percalços da democracia mexicana.
O marciano hipotético, observando o Judiciário e os costumes políticos, ficaria impressionado com a independência dos Poderes. Começou a sair de cena o Brasil do ``sabe com quem está falando?" para dar lugar à cobrança de comportamentos éticos em todos os níveis.
Nem mesmo os tetracampeões do futebol escaparam da reprovação nacional quando tentaram usufruir de privilégios alfandegários no retorno da Copa do Mundo.
Nosso marciano estaria perplexo com a evolução da agenda reformista, especialmente com a convergência crescente de posições a favor da racionalização do Estado, do combate ao déficit público e do repúdio aos mecanismos de perpetuação da cultura inflacionária.
O inglês, que já viu essa economia deixar de ser escravagista, deixar de ser agroexportadora e deixar de ser inadimplente, seria obrigado a reconhecer outra mudança fundamental ao ver a economia brasileira nos últimos dez anos deixar de ser protecionista.
Em 1985 as tarifas de importação beiravam, em média, os 60%. No início dos anos 90 essa barreira havia caído para a casa dos 14%. E o resultado, ao contrário do sucateamento industrial e tecnológico antecipado pelos catastrofistas de plantão, foi um aumento sem precedentes nos padrões de produtividade, qualidade e competitividade da indústria brasileira.
Houve portanto nos últimos dez anos mudanças políticas, institucionais, na moral pública e na agenda econômica que a muitos talvez escapem, imersos no lufa-lufa do dia-a-dia, impactados com o pacote de ontem ou a demissão sensacional de fulano ou beltrano.
É mais do que hora de os brasileiros tomarem consciência desses amadurecimentos reais e estruturais, que estão ao alcance da nossa compreensão. Na verdade não são coisas que só um marciano perceberia, nem mudanças superficiais só para inglês ver.
O futuro será sempre insondável. Mas é evidente que uma passadologia isenta já permite esperar mais, muito mais desse futuro.

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