São Paulo, domingo, 4 de junho de 1995
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(o)caso da namoradinha

SÉRGIO DÁVILA

Espeto, esta situação.
Ainda mais levando-se em conta a popularidade atual que a dona de Lua experimenta. A paulistana Alessandra Negrini vem de viver a Engraçadinha jovem, na série brasileira homônima baseada no folhetim de Nelson Rodrigues.
Bichinho de avenca
Foi preciso um romance escrito em 1959 pelo obsessivo pornógrafo pernambucano (1912-1980) para telespectadores, atrizes, psicólogos referendarem uma tendência. Ingênua, pura e sofredora, a velha namoradinha do Brasil morreu. Ou, por outra: o conceito fenece.
Em seu lugar, surge a mulher-amante, decidida, sedutora. "Houve a perda progressiva da ingenuidade nas representações televisivas", decreta o médico psicanalista Luiz Tenorio Oliveira Lima. "Em seu lugar, aparece o realismo cínico."
Engraçadinha, "amoral como uma planta ou um bichinho de avenca", na definição de seu autor, é a mais completa tradução dessa nova heroína do vídeo. Em entrevista nos anos 70, Nelson Rodrigues bem avisava: atores eram imperfeitos, mas a obra dele, Nelson, atemporal. Ficaria.
"Asfalto Selvagem - Engraçadinha, Seus Amores e Seus Pecados", que o dramaturgo imaginou em 112 capítulos diários, no extinto jornal carioca "Última Hora", entre agosto de 1959 e fevereiro de 1960, é um dos mais eróticos romances brasileiros.
Sua heroína (ou anti-heroína), Engraçadinha, de uma sensualidade irresistível. "Ao lado de apitu, ela se enquadra entre as grandes personagens femininas da literatura nacional", enunciou o escritor e novelista Aguinaldo Silva.
Eterna sofredora
Batata. "É sintomático como o Nelson, justo o antiidílico, o antiingênuo, passa a ter um prestígio maior nesses anos 90", diz Oliveira Lima. A namoradinha do Brasil, que floresceu nos anos 70 principalmente na figura da atriz Regina Duarte, ganhou seu algoz involuntário.
"Talvez o público esteja cansado não da personagem `boa', mas do fato de ela ser uma eterna sofredora", diz a psicóloga Maria Rita Kehl, autora do livro "O Amor É Uma Droga Pesada. Mais: "Na TV, o `bonzinho' é sempre linear, sem história, e o `malvado', mais arriscado, louco".
Isso se reflete também nas telenovelas em curso na Globo. De acordo com o departamento de Divulgação da emissora, a campeã atual de cartas de telespectadores é a atriz Helena Ranaldi. Ela interpreta a maluca Suzana, em "Quatro por Quatro".
Licensiosas, amorais
Estranho? Não, para a atriz. "Se você esquecer o lado psicótico de Suzana, ela atrai as pessoas porque é uma mulher instigante, que vai à luta", diz Helena. "E ela é mais crível do que uma heroína romântica."
Luiz Tenorio Oliveira Lima tem uma tese: "Antes, na TV, o bem e o mal eram muito bem divididos, não havia abertura para a ambiguidade. Hoje, há". Segundo o analista, decorre daí o aparecimento de personagens pérfidas, licenciosas, inescrupulosas, amorais.
Ironia ou não, o grande ideal feminino de Nelson Rodrigues, ele próprio um puro irremediável, finalmente encontra respaldo num veículo tão popular quanto a TV.
Show de `intertrepação'
Mylla Christie, 23, que encarnou a deliciosa Silene, filha de Engraçadinha na segunda fase do folhetim, é afirmativa: "Hoje, comunicação é sexualidade!". Um pouco por seu passado de apresentadora infantil, um tanto pelos novos tempos, a atriz viveu situações rocambolescas.
"Fãs me perguntavam se eu achava saudável que seus filhos de 5, 6 anos ficassem acordados até tarde para me ver na série", lembra. "Eu dizia que sim, claro, e eles saíam satisfeitos, de autógrafo na mão." "A Vida Como Ela É" perde feio.
Para viver Silene, Mylla Christie diz que teve de quebrar barreiras de formação e família. Pura reencarnação de Lolita, a adolescente do subúrbio passa boa parte da trama nua. "Mas a personagem me ensinou muita coisa", diz.
A saber: que toda mulher tem uma santa e uma perversa dentro dela; que a mulher que escancara sua sexualidade fica mais próxima da versão feminina do `homo sapiens' (?); e que isso é bom.
"Somos todas uns anjinhos pornográficos, uma contradição entre ingenuidade e sedução", completa. Mais direto foi o "ombudsman de televisão" José Simão, colunista da Folha: "As Engraçadinhas deram um show de `intertrepação'!"
Distante de todo esse barulho, mas com a chancela de quem é estudioso extremado da obra rodriguiana, o crítico teatral Sábato Magaldi concede: "O raciocínio procede, passamos da namoradinha à Engraçadinha".
Sutiã apertado
Nas linhas de Nelson Rodrigues, Engraçadinha era "só sexo e seu olhar, seu sorriso, seu andar, seus quadris, vinham pesados de voluptuosidade". Ou, como prefere Claudia Raia (que viveu o personagem aos 38 anos), "um grande seio, que tenta escapar de um sutiã apertado".
Alessandra Negrini mostrou que se encaixava em ambas as definições. Mas não foi fácil. "Ela acordou coisas dentro de mim", diz, enigmática.
Ela é quase uma estreante, o que impressiona mais. Antes do papel que lhe rendeu elogios na crítica -de "primorosa" a "surpreendente"-, fez duas pontas na Globo. No teatro, profissionalmente, "Becket in White - A Comédia", ainda em cartaz. E dois curtas.

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