São Paulo, segunda-feira, 5 de junho de 1995
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O legado de Bastide

RICARDO MUSSE

Bastidiana
Cahiers d'études bastidiennes
vols. 7/8, jul-dez/1994
R$ 17,00

Roger Bastide (1898-1974) não foi um inventor de sistemas. Deixou, porém, uma obra alheia à especialização acadêmica que tangencia os diversos saberes das ciências sociais e a lição de um procedimento que visa sobretudo a investigação de problemas. Para evitar que tal legado caísse no esquecimento o Centre d'Études Bastidiennes edita, desde 1993, uma revista trimestral dedicada a divulgar o pensamento e a obra de Bastide.
O número 1 contém, além da apresentação do projeto e de depoimentos sobre Bastide, uma bio-bibliografia que compendia os seus escritos, quantificando-os por períodos (durante a guerra, no Brasil, Bastide escreveu 217 artigos, 4 livros e 81 resenhas). A tentativa de organizar tematicamente tais textos fracassa, entretanto, mercê de uma classificação que, privilegiando desmesuradamente a questão do sagrado, não dá conta da heterogeneidade da obra. Há ainda um artigo de Maria Isaura Pereira de Queiroz sobre os anos brasileiros de Bastide que mostra, entre outras coisas, como o contato, pessoal e intelectual, com os intelectuais brasileiros levou-o, cedo, a questionar a postura etnocêntrica.
O segundo número, intitulado ``Questões de Método", reproduz sete artigos de Bastide. Em dois deles, do final dos anos 20, discute-se a obra de Émile Durkheim. Nesta, Bastide recusa principalmente a sociologia da religião, elaborada numa época em que a preocupação de Durkheim não era mais a constituição da sociologia, enquanto disciplina autônoma, mas antes a elaboração de uma metafísica sociológica dedicada à questão do conhecimento e do Ser. Dos demais, três artigos nos interessam particularmente. Um, por ser uma reflexão sobre a etno-história do negro brasileiro, onde as peculiaridades e os impasses do movimento negro entre nós são confrontados com o caminho adotado pelos norte-americanos. Outro, por relatar, precisando o conceito antropológico de participação, a sua iniciação num dos candomblés da Bahia. O terceiro, publicado aqui em 1939, nos apresenta o método monográfico romeno, extraindo daí sugestões -muitas delas desenvolvidas posteriormente por ele ou por seus discípulos brasileiros- para a investigação sociológica no Brasil.
Dedicado inteiramente ao levantamento da obra de Bastide, o terceiro número recompõe o corpus, a integralidade tal como é conhecida hoje, dos seus escritos. Lista, indicando apenas data e local da publicação, 1328 títulos, entre livros, artigos e resenhas. Fica patente assim a multiplicidade de seus interesses que abrangem da sociologia geral à antropologia aplicada, da psiquiatria social à crítica literária, da etnologia à filosofia, etc..
A proximidade afetiva dos editores com Bastide prejudica sobremaneira um lado da revista, a tentativa de resgate biográfico. Em vez de uma história intelectual ou mesmo pessoal, com seus inevitáveis dilemas e impasses, grande parte dos depoimentos dedica-se a apenas a ressaltar as qualidades morais do homem e do professor, não superando a condição de ``evocações nostálgicas". Isso vale para a totalidade dos depoimentos do número 4 e também para os testemunhos coligidos no número 6, com exceção do artigo do libanês Sélim Abou -um belo e preciso perfil intelectual de Bastide- e do texto de Maria Isaura Pereira de Queiroz que destaca, além da contribuição do professor e membro atuante do debate intelectual brasileiro, a nova orientação adquirida pelas ciências sociais entre nós ao seguir a exigência bastidiana de observação direta dos fatos e de trabalhos monográficos.
A obsessão pela integralidade, esse vício de especialista, certamente está na origem do destaque imerecido que, às vezes, se dá a textos menores ou de circunstância. É o caso do número 5, com escritos de Bastide sobre Proust e Gide. Uma vez que o próprio Bastide já havia coligido em livro (``L'Anatomie d'André Gide") os seus melhores ensaios sobre Gide, os textos restantes, certamente despertarão pouco interesse, ao que escapa apenas um brilhante artigo acerca das idéias sociológicas de Gide.
Estes pequenos senões são totalmente redimidos pelo acerto na escolha do tema do número duplo 7/8, a íntegra dos textos de Roger Bastide sobre Claude Lévi-Strauss. Configuram-se aí não só o ponto alto da revista, mas também um grande momento do debate antropológico no século.
Bastide resenhou os livros mais importantes de Lévi-Strauss, no calor da hora, com uma discreta simpatia. Ao analisar ``Les Structures Élementaires de la Parenté" (As Estruturas Elementares do Parentesco), em 1950, Bastide já ressaltava a originalidade e a importância das descobertas de Lévi-Strauss, antecipando como a busca da passagem do natural ao social e aí das regras da estrutura inconsciente, mas sempre lógica, do espírito humano permitia um corte brusco com uma série de falsas questões que retardavam o andamento da antropologia, sem deixar de apontar, entretanto, para outros e novos problemas que essa obra não dava conta.
É possível acompanhar, nessa série notável de resenhas (onde se destaca uma comparação entre Proust e ``Tristes Trópicos"), a expectativa (sempre frustada) de Bastide de que Lévi-Strauss reflita acerca da unilateralidade de seu projeto e dê, finalmente, guarida aos valores, aos conteúdos, à história. Daí, talvez, a variedade de artigos nos quais, sob as mais diferentes perspectivas, Bastide não apenas critica o formalismo da antropologia estrutural, mas a toma como fio para a apresentação de suas concepções, revisitando autores cuja linhagem, apesar da leitura divergente, compartilha com Lévi-Strauss: Durkheim, Mauss e Lévy-Brühl; Kant; mas também Marx e Freud.

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