São Paulo, segunda-feira, 5 de junho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O besouro e a borboleta

GABRIEL COHN

Chatô - O Rei do Brasil
Fernando Morais
Companhia das Letras, 736 págs.
R$ 31,00

Mauá - Empresário do Império
Jorge Caldeira
Companhia das Letras, 542 págs.
R$ 31,00

Seu império tinha um quê de besouro, algo cuja existência era impossível pela lógica comum, escreve Jorge Caldeira no livro que dedicou aos empreendimentos de Irineu Evangelista de Sousa, barão e depois visconde de Mauá. A imagem de Mauá como um besouro e do seu império empresarial como o difícil desmentido da sua incapacidade de voar diz muito sobre o modo como o autor deste livro notável vê o seu personagem e a sua época.
``Empresário do Império", diz o subtítulo do livro. Não se trata de mero enunciado descritivo. Nisto exprime-se o problema todo: o impossível empresário capitalista moderno, que levantou vôo no ar rarefeito do Brasil monárquico e soube alçar-se cada vez mais alto até vir ao solo -junto, aliás, com o império que lhe tolhia os movimentos. É verdade, claro, que não só os tolhia. Parte do encanto do livro está no modo como o autor reconstrói a complexa dinâmica do entrelaçamento que se vai operando, entre uma trajetória que o empresário privado inovador bem gostaria que fosse linear e os rumos sinuosos da política e da sociedade do Império.
Vemos então o homem de empresa estritamente racional e, nestes termos, avesso ao uso do trabalho escravo, ser levado agora pela lógica própria ao regime escravista (homens livres não se dedicam ao trabalho manual, portanto não se especializam em ofícios), a comprar o seu famoso estaleiro em Niterói -ponto de partida do seu complexo empresarial- com o seu lote de escravos especializados incluído na transação. Ou, na arena política, acompanhamos o intrincado (mas também, em muitas passagens, simplesmente grosseiro) jogo das alianças num ambiente em que ``saquaremas" e ``luzias" alternam-se na disputa por vantagens e favores arbitrado por um monarca bem servido da astúcia dos medíocres.
Esse quadro todo -e a reconstrução do contexto histórico em que se movem seus personagens é um dos pontos altos do livro- ganha luz e relevo pela presença de Mauá. Mas -e aqui de novo se tem a marca da argúcia do autor- não se confunde o foco no personagem na organização do relato com sua centralidade no seu momento histórico. Ao contrário, é na precisa inserção do personagem no seu tempo que ele acaba aparecendo sempre um pouco descentrado, deslocado, em busca do seu lugar, do seu impossível lugar no mundo em que lhe é dado trabalhar. E trabalhar é bem o termo. Ao longo de todo o livro só se fala disso, e da tipicamente excêntrica valorização do trabalho por Mauá.
Trabalho obstinado, no registro de uma modernidade capitalista que anuncia, isolado; descentramento histórico que se traduz em excentricidade social. Eis os traços básicos da reconstrução que se faz de Mauá, ao longo das 542 páginas deste livro inusitadamente denso para obra do seu tipo. E, no entanto, de leitura muito agradável. Para esse agrado contribuem a elegância da escrita e a maestria no manejo das informações históricas e econômicas. (Claro que, aqui e ali, o leitor pedante encontrará os inevitáveis cochilos. Assim, o John Mill que aparece na página 120 certamente é James Mill; e o Rui Guilherme Graziano citado na página 549 é na realidade Granziera). Mas, além disso, há um traço muito característico da exposição. É que nela são frequentes as passagens em que o autor recorre à ironia, às vezes acerba. Mas isso só ocorre quando estão em jogo personagens representativos da política imperial, ou figuras menores do cenário econômico da época.
O próprio Mauá escapa ileso de ponta a ponta e é alvo de uma explícita admiração que só escapa da apologia porque o autor, sobre ser refinado demais para isso, busca em cada momento entender as razões para as suas condutas e se empenha em reconstruir os traços básicos do seu caráter, marcado pela ``persistência nas dificuldades e o otimismo infantil nos acertos" (pág. 283). Mas a mesma preocupação com compreender as suas razões não se estende aos seus adversários, que quase sempre se apresentam movidos por interesses menores. Isso funciona bem como recurso para mostrar, pela via do caráter miúdo das ações dos que cercam Mauá, a mesquinharia do ambiente em que todos estão encerrados. Mas polariza a análise, reduz os demais a meras expressões típicas de um ambiente, que respondem mais a impulsos do que a razões. Nisso há um quê de esquemático no livro.
Entende-se o fascínio do autor pelo seu personagem. Não se pode dizer que um homem que iniciou sua atividade profissional no comércio (como aprendiz em empresa de vulto, na época) aos nove anos de idade, com o Brasil mal tendo entrado em sua fase de nação independente, e cuja carreira atravessa mais de seis décadas até o ocaso do Império, passando por extremos de expansão empresarial e de fortuna pessoal, seja uma figura comum. Mas dizer, a esta altura, que Mauá foi um homem excepcional no seu tempo, realmente não acrescentaria grande coisa ao que o senso comum reconhece. Por que, então, concentrar toda a atenção na pessoa de Mauá, dedicar-se com tanto afinco à reconstrução da sua biografia? A resposta é dada na própria construção da obra. Nela, os resultados de uma pesquisa extensa e minuciosa somente ganham condições para ser expostos quando a reconstrução do seu ambiente histórico mais amplo (e, dada a natureza da atuação de Mauá, isso significa traçar um painel de proporções planetárias) permite conferir-lhes um sentido. E não é difícil detectar esse sentido.
Na figura e na trajetória de Mauá vislumbra-se uma potencialidade da história brasileira que, entretanto, não se realizou. É por isso que, sem qualquer ranço apologético, a figura de Mauá aparece com feições titânicas. Ele distendeu ao extremo a corda do arco da nossa modernidade econômica no século 19. Mas, exatamente porque não era um titã que desafiasse deuses, apenas um barão (ainda que nada desprezível) condenado a mover-se entre outros barões menores na sua terra e o grande baronato do capitalismo mundial novecentista, sua flecha ganhou altura mas não atingiu o alvo.
Comparado com o vôo penoso do besouro Irineu Evangelista de Sousa no Brasil imperial, as evoluções borboleteantes de Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo no Brasil republicano, representam uma rigorosa inversão da imagem. Ao ``empresário do Império" de Jorge Caldeira responde o ``rei do Brasil", no livro de Fernando Morais sobre ``Chatô". O problema está posto: se o Império tolhe o empresário capitalista moderno, a República dá espaço para um rei.
Comparado ao de Jorge Caldeira, o livro de Fernando Morais tem menos peso analítico, restringe-se mais à descrição. Em parte, isso é resultado do seu próprio objeto. Chateaubriand conheceu todas as pessoas, esteve em todos os lugares, meteu-se em tudo; mas é uma figura sem densidade. Até na natureza da sua fortuna e do seu poder, ele é o oposto de Mauá. Enquanto um investia na indústria pesada, nos transportes e nas finanças, o outro concentrou-se na indústria mais leve de todas: a da comunicação, começando pelo jornalismo. Claro, é a indústria mais característica deste século, e nisto ele estava sintonizado com seu tempo. Aliás, ele sempre esteve sintonizado com o seu tempo. No seu modo de agir, o termo indústria ganhava mais o antigo sentido de astúcia do que o de operosidade produtiva. O seu senso de oportunidade era enorme. Traduzia-se na audácia do aventureiro atento ao momento de fazer o jogo, mais do que na busca consciente do risco do empresário inovador.
Se Mauá reagia ao sucesso com otimismo infantil, Chateaubriand era infantil sempre: homem de impulsos, de vontades sem freios, autoritário e possessivo em graus extremos e, ao mesmo tempo, capaz de gestos inteiramente desprendidos; inteiramente autocentrado em suma. Uma espécie de caricatura bem sucedida do ``caráter nacional brasileiro" (essa outra caricatura). Para falar de um aventureiro, nada melhor do que narrar suas aventuras. Foi o que Fernando Morais fez, do modo mais competente.
No livro de Caldeira, o relato de uma oportunidade histórica desperdiçada; no de Morais, o relato do oportunismo pessoal bem sucedido. Em ambos os casos, impérios que desabam com a morte dos seus criadores. Fica no ar, claro, a questão do caráter dessa nossa modernização, que, nos seus diferentes registros, está presente em ambos os autores. Talvez valha a pena lembrar que o mestre evocado nas dedicatórias de Caldeira interrogava-se há 30 anos, em livro importante (com o título bem USP-anos 60 de ``Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil") sobre a consistência do nosso empresariado.

Texto Anterior: O legado de Bastide
Próximo Texto: Light & Blitzkrieg
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.