São Paulo, segunda-feira, 5 de junho de 1995
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O Jeca Resgatado

JOSÉ MURILO DE CARVALHO

Erramos: 09/06/95
No Jornal de Resenhas do último dia 5, a ilustração da pág. Especial-14 foi publicada sem crédito. Trata-se de um nanquim da artista plástica Lygia Pape, feito este ano.
O Jeca Resgatado
Um Jeca nos Vernissages
Tadeu Chiarelli Edusp, 261 págs. R$ 54,40

Tadeu Chiarelli propõe-se a tarefa de desmontar um mito criado por modernistas e historiadores do Modernismo: o mito de Monteiro Lobato como algoz de Anita Malfatti, como mau pintor, crítico incompetente, defensor do academicismo. Recorde-se o episódio central da estória.
Depois de estadas relativamente longas na Alemanha, onde absorveu influência expressionista, e nos Estados Unidos, onde ampliou seus estudos, Anita Malfatti, então com 21 anos, realizou em São Paulo, em dezembro de 1917, uma exposição de trabalhos seus e de alguns colegas americanos, intitulada ``Exposição de Pintura Moderna - Anita Malfatti". Monteiro Lobato comentou a exposição em artigo publicado em ``O Estado de S. Paulo" sob o título ``A propósito da Exposição Malfatti". O artigo foi republicado em 1919 em ``Idéias de Jeca Tatu", com o título pelo qual ficou conhecido: ``Paranóia ou Mistificação?". Com estilo contundente e ferino, Lobato desanca a arte moderna em suas várias manifestações, futurismo, cubismo, expressionismo. Para ele, as representações distorcidas da realidade só poderiam ser fruto de mentes doentias (paranóia). Fora dos manicômios, seriam apenas mistificação. Anita Malfatti, após a exposição, recuou das posições de vanguarda e não teve o papel que parecia lhe estar destinado de pioneira da modernidade nas artes plásticas nacionais.
Sentindo o dano que poderia causar ao movimento o recuo da artista, os modernistas, Mário de Andrade e Menotti del Picchia à frente, e mais tarde historiadores do Modernismo, como Mário da Silva Brito, abriram as baterias contra Lobato. O ataque cruel do escritor teria sido responsável pelo recuo de Malfatti e pela frustração de sua carreira. O ataque em si foi desqualificado como fruto de ressentimento de alguém que não conseguira êxito como pintor e que não tinha qualificação para ser crítico de arte. Finalmente, Lobato seria prisioneiro do academicismo, incapaz de entender e aceitar as novas tendências artísticas.
Chiarelli procede a minucioso e sistemático trabalho de desmentir todas essas acusações. Capítulo a capítulo, seção a seção, demonstra que Malfatti já começara a recuar mesmo antes da exposição, embora tivesse incluído nela obras mais radicais, não se devendo, portanto, a Lobato o recuo; que Lobato era na época o mais militante e o mais respeitado crítico de arte de São Paulo; que o ataque não foi dirigido diretamente a Malfatti, por quem Lobato demonstra admiração, mas à arte moderna em geral; que a carreira de pintor não tinha para Lobato a importância sugerida pelos modernistas; que, finalmente, em matéria de estética, Lobato não era acadêmico mas naturalista à moda de Zola com concepção definida sobre qual deveria ser o papel do artista e a natureza da arte no Brasil.
O desmascaramento do esforço de desacreditar Lobato para defender e preservar a hegemonia modernista, é a grande contribuição do livro. Ele vem envolto em abundante informação sobre a vida artística de São Paulo na segunda década do século. Importante para o caso específico do conflito entre Lobato e os modernistas, o livro contribui ainda para reforçar o lado revisionista da historiografia recente, não hesitando em dirigir o olho crítico mesmo em direção a instituições sagradas como a do Modernismo de 1922.
O autor vai mais além, no entanto. Examina a base valorativa da convicção estética de Lobato, que localiza em sua postura radicalmente nacionalista. Aqui, o argumento não é tão cerrado e convincente como na desmontagem do mito. Está muito clara a preocupação nacionalista de Lobato. Como ele mesmo diz no prefácio de ``Idéias de Jeca Tatu", seu objetivo central é a luta contra o macaco, contra o copiador de idéias e padrões estéticos estrangeiros, sobretudo franceses. O que Chiarelli não esclarece de maneira satisfatória é a relação entre o nacionalismo político e o naturalismo estético. Em sua exposição, Lobato parece recuar ainda mais do que Malfatti após 1917, cedendo no nacionalismo para se concentrar na defesa do naturalismo, às vezes recuando mesmo para o academicismo. Antes que acontecesse a Semana de Arte Moderna já abandonara a crítica de arte para se concentrar na literatura e na atividade editorial.
Para Lobato, o naturalismo era condição para se fazer arte nacional? Condição suficiente certamente não era, pois para ele Pedro Américo teria sido o maior dos pintores brasileiros e o menos brasileiro dos pintores. Era brasileiro quando pintava a Batalha do Avaí ou o Grito do Ipiranga. Não era brasileiro em quase todo o resto, mesmo em ``A Carioca", em que uma possível carioquice poderia ser vislumbrada apenas na negrura dos olhos.
Almeida Júnior, por outro lado, era brasileiríssimo porque pintava caipiras e paisagens brasileiras, porque fazia arte brotada da terra e da raça. A arte brasileira devia, então, combinar naturalismo e temática brasileira? A importância do naturalismo seria neste caso a indispensabilidade de uma visão ``normal" das coisas para que fosse possível identificar e reproduzir figuras, paisagens, cores brasileiras. Quem visse anormalmente as coisas, quem as desfigurasse, caricaturasse, como faziam expressionistas e cubistas, segundo a crítica de Lobato, estaria impedido de fazer arte nacional pela própria escolha da linguagem estética. Seria possível pintar um Saci Pererê cubista ou dadaísta?
Problema semelhante colocava-se para os modernistas. Após a guinada operada pelo ``Manifesto da Poesia Pau Brasil", de Oswald de Andrade (1924), a mesma preocupação nacionalista de Lobato passou a dominar setores do Modernismo. Oswald emprega a mesma expressão usada por Lobato para definir a atitude que era preciso combater com todas as armas: macaquear, copiar o estrangeiro, fugir do local e do nacional. Aliás, no que se refere à preocupação nacionalista, nem Lobato nem Oswald traziam novidade.
O tema e o problema do nacional preocuparam boa parte da intelectualidade brasileira na segunda década do século e tornaram-se quase obsessivos após a Primeira Guerra. Na verdade, já antes escritores como Manuel Bomfim, Sílvio Romero, Euclides, Afonso Celso, Graça Aranha, para citar apenas alguns, perguntavam-se pela natureza do ser nacional.
Na segunda década, ao lado de Lobato, ou mesmo influenciando Lobato, estavam Belisário Pena, Alberto Torres, Olavo Bilac, Álvaro Bomílcar, também para dar apenas alguns nomes, ao lado de movimentos como a Liga de Defesa Nacional (1916), a Liga Nacionalista de São Paulo (1917), a Propaganda Nativista (1917) e a própria “Revista do Brasil” (1916), que Lobato comprou e passou a dirigir.
O que seria brasileiro na arte modernista ? A primeira fase modernista foi pura macaqueação. Mesmo o Pau Brasil tinha a ver com o primitivismo europeu. Paulo Prado observou que Oswald descobriu o Brasil em Paris.
A diferença entre Lobato e Oswald estaria no fato de um ter descoberto o Brasil em Paris e o outro em uma fazenda do Vale do Paraíba? O que seria mais, ou menos brasileiro, a “Carioca”, de Pedro Américo ou o “Abá-Puru” de Tarsila do Amaral? Se Lobato só via de brasilleiro na “Carioca” o nome e o negro dos olhos, não se poderia dizer que o que há de brasileiro em “Aba-Puru” é apenas o nome e o verde-amarelo?
Ou tome-se o exemplo do excelente Vicente do Rego Monteiro, que presenteou Lobato com uma estilização do Jeca. Seu quadro “Mulher Sentada”, de 1924, pode ser chamado de arte brasileira, não poderia ter sido pintado em qualquer lugar do mundo?
A Antropofagia foi tentativa de elaborar melhor a idéia de nacional dentro do Modernismo. Não se tratava mais de evitar a importação de idéias e modelos estéticos, mas de os devorar e absorver e os transformar em linguagem e matéria nacional. Mas também nisto não há muita diferença em relação a Lobato, que aceitava a importação dos cânones da arte tradicional, para ele imutáveis, independentes de tempo e espaço. A coisa se complica se trazemos para o debate a briga entre os próprios modernistas, entre a antropofagia e o verde-amarelismo, sem falar na posição independente de Mário de Andrade. Qual era a briga, afinal?
Era estética ou era política? Ou a estética se tornava o campo de uma briga política?
Quem estava politicamente mais próximo de Oswald, os modernos Plínio e Menotti del Picchia ou o naturalista Lobato?
De uma perspectiva política, o naturalismo conservador de Lobato perde importância diante do revolucionarismo de trazer o caboclo, o Jeca Tatu, para o centro do debate político. Di Cavalcanti talvez seja menos revolucionário pelo traço cubista do que por ter minado o racismo colocando mulatas e samba em suas telas. Lobato e Di, por caminhos estéticos distintos, chegaram ao mesmo resultado de resgatar setores marginalizados da sociedade e contribuir assim para a redefinição inovadora da identidade nacional. Do mesmo modo, o moderno Plínio ligava-se ao tradicional Afonso Celso na visão conservadora da tradição brasileira. Mas se a briga era, afinal, em torno de ser brasileiro, talvez todos, Lobato e os modernistas, fossem conservadores em matéria de arte, pois esta acabava sempre julgada em função de critérios externos limitadores da imaginação criadora do artista.
São temas que o livro de Chiarelli não explora a fundo mas deixa formigando na cabeça do leitor. Pelo inovador tratamento do conflito Lobato-Malfatti e pelas intrigantes perguntas que desperta a propósito da relação entre arte e política, o livro deve ser saudado e recomendado.

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