São Paulo, segunda-feira, 5 de junho de 1995
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Razão e sociedade

FÁBIO WANDERLEY REIS

Razão e sociedade
Peças e Engrenagens das Ciências Sociais
Jon Elster Tradução: Antônio Trânsito Relume-Dumará, 211 págs. R$ 16,00

Infelizmente, o livro de Jon Elster aparece em tradução marcada pelas deficiências usuais. Realizada por Antônio Trânsito, a tradução não apenas resulta em prosa carregada de impropriedades, mas chega mesmo a distorcer e trair inequivocamente, em certas passagens, o texto original em inglês.
Jon Elster é uma das mentes de maior acuidade analítica e um dos autores mais produtivos e prolíficos das ciências sociais da atualidade. O livro é uma espécie de manual em que são apresentadas compactamente, e sem os andaimes acadêmicos normais das numerosas notas bibliográficas em rodapé, as idéias elaboradas pelo autor em vários outros volumes mais ou menos recentes. O resultado é uma ótima introdução à perspectiva que se tornou conhecida como a abordagem (ou teoria) da ``escolha racional", à qual Elster se filia de forma tensa e crítica.
O livro divide-se em três partes: uma breve introdução metodológica, em que o autor esboça sua perspectiva sobre o problema da explicação no campo das ciências sociais; uma parte sobre ``ação humana", que gira em torno do tema crucial da racionalidade e seus correlatos e limites como categoria explicativa central na abordagem da escolha racional; e uma parte final sobre ``interação", onde se examinam os efeitos, ao nível agregado ou coletivo, da operação do cálculo racional e de outros mecanismos que com ele se relacionam de maneira problemática, tais como as normas e instituições sociais. Todo o material é apresentado e processado com a segurança e a fruição características, e o resultado, como sempre nos trabalhos de Elster, é grandemente estimulante pelos numerosos ``insights" que propicia e a articulação notavelmente ágil estabelecida entre eles.
Mas o livro é também, pelo que tem de insatisfatório em determinados aspectos, ele mesmo um exemplo das dificuldades com que se deparam os que se envolvem nos debates relacionados com a teoria da escolha racional. Tratando-se de Elster, que se distancia de certas posições de adeptos mais ortodoxos da abordagem, essas dificuldades se tornam especialmente reveladoras.
Quanto ao aspecto metodológico, pode-se pôr de lado como relativamente inócua a precariedade da idiossincrática posição que Elster adota sobre o problema da explicação e à qual alude o título do livro (que na verdade se traduziria mais fielmente por algo como ``porcas e parafusos para as ciências sociais"). Essa posição pretende sustentar que a busca de teorias ou proposições gerais deveria ser substituída pelo recurso a múltiplos ``mecanismos". Mas não escapa à objeção de que, para ser satisfatório como explicação, tal recurso não tem como prescindir da articulação canônica entre fatos e eventos singulares, de um lado, e generalizações teóricas de outro.
De maiores consequências, no plano metodológico, é aquilo que ainda permite situar Elster, apesar das reservas, no campo da escolha racional: seu individualismo metodológico, a convicção de que a explicitação para os fenômenos sociais se encontrará ao nível das ações humanas individuais -ou a busca, de acordo com o moto conhecido da ``escolha racional", dos ``fundamentos micro para os fenômenos macro". Essa convicção o leva mesmo a registrar explicitamente seu compromisso com a redução da sociologia à psicologia.
Tais supostos imprimem uma peculiar distorção aos trabalhos no campo da escolha racional, que está presente em Elster e tem ramificações importantes no exame ``substantivo" ou teórico dos temas. Ela consiste em que o objetivo crucial do trabalho é entendido como sendo o de explicar a própria sociedade como tal -ou seja, em inventar ou deduzir, a partir de postulados que remetem a agentes calculadores postos numa espécie de ``estado de natureza", tudo aquilo que é sociologicamente interessante ou significativo numa sociedade real: lealdades ou solidariedades, normas, instituições, valores, bem como o condicionamento que exercem da ação orientada por fins de qualquer tipo. Em Elster, essa perspectiva aparece de forma mitigada na idéia (que é afirmada e repetida em ``Peças e Engrenagens") de que as ciências sociais têm de explicar por que não estamos no estado de natureza -de forma mitigada, dizemos, porque tal maneira de conceber o trabalho convive, no caso de Elster, com o reconhecimento de um papel autônomo para as normas, que não poderiam ser elas mesmas deduzidas do cálculo baseado no interesse próprio dos agentes.
Contudo, as dificuldades de Elster se dão no fato (evidenciado com clareza nas discussões deste volume) de que racionalidade e normas não chegam nunca a articular-se efetivamente em seu pensamento, e tudo se passa como se a racionalidade devesse necessariamente ser vista como dizendo respeito a um mundo em que prevalecem interesses egoístas e estreitos -ou seja, a um ``estado de natureza" que subsistiria na complexidade da sociedade em que as normas existem e que conviveria precariamente com elas.
Por outras palavras, Elster não dá consequência ao reconhecimento (presente em sua obra) de que o traço distintivo da racionalidade é a busca eficiente de fins de qualquer natureza, e de que tais fins podem ser não apenas altruístas, mas também normativamente definidos. Tal reconhecimento levaria, no limite, à concepção segundo a qual a racionalidade plena estaria na capacidade de buscar com equilíbrio certo ideal de vida que seja o objeto de decisões autônomas (e não meramente conformistas ou convencionais) por parte do indivíduo -isto é, na capacidade de definir as próprias normas que se irá seguir a partir da assunção lúcida e seletiva de certa identidade dos valores correspondentes, que serão sempre socialmente dados em medida importante.
O problema acaba se ramificando assim, rumo à questão das relações entre racionalidade, moralidade, identidade e autonomia, impondo considerações como as que marcam os trabalhos sobre o desenvolvimento intelectual e moral de autores como Piaget, Kohlberg e Habermas -literatura da qual Elster passa ao largo. Aliás, pode-se dizer que as idéias de Elster o colocam aquém do próprio Max Weber, cujo esforço por diagnosticar e compreender o racionalismo ocidental o levou não somente ao estudo de temas como a burocracia e o capitalismo, mas também a toda a sociologia weberiana das religiões -e não porque estas apareçam como elemento de contraste, mas pela importância atribuída ao desenvolvimento religioso como parte intrínseca e mesmo crucial de um processo secular visto como de racionalização.
Em síntese, o trabalho de Elster, não obstante o que contém de heterodoxo com respeito às perspectivas mais convencionais da abordagem da escolha racional, continua sendo expressivo dos embaraços com que se defronta a abordagem como tal, e ``Peças e Engrenagens" propicia adequada ilustração disso. Esses embaraços podem provavelmente resumir-se em um paradoxo central: o de que, tendo na racionalidade a categoria básica, a abordagem se vê condenada a optar entre: 1) manter-se apegada a uma concepção pobre de racionalidade, na qual se visualizam agentes que perseguem objetivos dados de maneira mais ou menos míope, caso em que conseguirá apresentar-se como abordagem peculiar em confronto com a sociologia ou a ciência social ``convencional"; ou 2) aderir de maneira consequente à eleição da categoria da racionalidade como categoria central e dar atenção plena às complicações nela envolvidas, caso em que não escapará de diluir-se numa sociologia ``convencional" para dar conta de maneira adequada daquilo que conforma socialmente o próprio ator racional como tal.

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