São Paulo, segunda-feira, 5 de junho de 1995
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Um misto de cálculo e risco

SÔNIA SALZSTEIN

Franz Kline: Black & White, 1950-1961. David Anfam Houston, Texas, The Menil Foundation, Inc., 1994 US$ 75,00

No ensaio que dedica à exposição de Franz Kline (1910-1962) apresentada recentemente no Museu de Arte Contemporânea de Chicago, David Anfam gasta boa parte de suas considerações afirmando a singularidade do trabalho do pintor no contexto do expressionismo abstrato. Tal contexto, como se sabe, introduz-se na história da arte moderna como momento de turbulência, crise, mas também de extraordinária demonstração de potência da produção artística norte-americana dos anos 50.
A geração de artistas que então emergia -além do próprio Kline, ela revelou nomes como De Kooning, Gorky, Rothko, Newman, Pollock- fez com que as atenções se desviassem de Paris, tradicional pólo irradiador, e projetassem Nova York no centro dos acontecimentos. Em suma, um fenômeno que pôde florescer graças aos ânimos renovadores que encontrou, estimulados ainda por políticas institucionais afirmativas, que incitaram a produção artística norte-americana à condição de protagonista importante das profundas transformações culturais que tomaram impulso no pós-guerra.
A obra destes artistas -especialmente a pintura explosiva e processual de Pollock e (mas de um outro modo) também a de De Kooning- evoca um repertório formal de radicalidade e ruptura, que Kline parece mirar a certa distância. Talvez seja este o motivo pelo qual temos a impressão, ao longo do texto, de que Anfam está pouco à vontade para situar esta atitude mais ``clássica" e mais ``compositiva", típica de um pintor de perfil quase europeu (há nele, afinal, algo de Pierre Soulages), na estridência de um meio artístico relativamente jovem e por isto mesmo disponível para realizar a tabula rasa do passado e da tradição.
Não nos esqueçamos, diga-se de passagem, que a empresa iconoclasta tratava, ao mesmo tempo que da iconoclastia, de refundir a história da modernidade européia no vocabulário da nascente cultura cosmopolita americana -isto é, a questão do plano, da autonomia da superfície, premissa modernista por excelência, via-se, afinal, resgatada e aclimatada lá, na pintura da ``Escola de Nova York".
Desde então, esta cunha interpretativa, que vê a arte americana do momento como depositária universal do legado modernista de Cézanne -sabe-se, a propósito, que o crítico de arte Clement Greenberg (1909-1994) é seu grande teórico- se estabelecerá como critério dominante na história recente da arte moderna, a tal ponto que se tornará difícil não remeter toda a produção artística dos anos 50, 60 e 70 à idéia greenberguiana da autonomia progressiva do suporte, em direção à pura forma. Um formalismo libertário e radical que, não obstante o embaçamento do projeto histórico da modernidade, assaltado pelo niilismo e pelo pragmatismo extremados que invadiram nosso ambiente artístico e intelectual a partir dos anos 80, descortinando-nos uma nova problemática cultural, não terá encontrado, até hoje, adversário à altura de seu rigor conceitual, inteligência teórica e paixão militante.
Mas voltemos ao Kline de David Anfam. É certo que o plano -tal como concebido na estética formalista de Greenberg- jamais assoma plenamente às telas de Kline, que preza a plasticidade das formas e da matéria, e trai adesão à tradição da pintura. Embora reconheça esta faceta ``clássica" do artista, Anfam passa rente a ela, e se concentra sobretudo na indicação de certos temas ``mais contemporâneos" que identifica em sua pintura, tais como a afinidade pela fotografia e um interesse pela cultura urbana e seus subprodutos, a evocarem violência e solidão. No entanto, aí estaria, a meu ver, uma questão intrínseca à pintura de Kline -um temperamento talvez mais cético que o de seus contemporâneos-, que não quer enfim destruir toda possibilidade de linguagem, porque cada obra resultaria, antes, de batalha de vida e morte para alcançar uma origem, algo como o signo em sua brutal literalidade. É, aliás, o próprio pintor quem afirma, que faz sim um signo, mas não ``para ser lido" (pág. 16).
Não se trata absolutamente de diminuir a importância do parentesco que o trabalho revela com uma forma fotográfica, sendo a instabilidade da luz, a dispersão ou a concentração de massas de sombra (que nada são senão índices de uma forma inelutavelmente fragmentária), a prova mais evidente de tal parentesco. Ocorre que o autor não extrai todas as consequências desta aproximação, que apontariam os enfrentamentos (e as resistências) do artista perante um mundo marcado pela provisoriedade e heterogeneidade das formas.
A exposição que Anfam comenta reuniu pela primeira vez, desde 1962, um conjunto exclusivo de pinturas da série em branco e preto, produzidas ao longo da carreira de Kline. Como o crítico nota bem, o que chama a atenção nestas obras é a tensão que se estabelece entre forças opostas, de sorte que há aí um cerrado raciocínio construtivo (embora a forma não resulte em nada construtiva), garantindo que o desenvolvimento progressivo do gesto (áreas negras) encontre sempre a resistência do entorno, que pressiona para se expandir (áreas brancas). O que assegura o equilíbrio precário destas forças é um misto de cálculo e risco -daí a concisão formal, a abdicação de todo gesto prolixo, pois ao menor extravasamento correr-se-ia o risco de se perder a tão buscada literalidade do ``signo", a gênese de qualquer condição expressiva.
Tal embate, que se dá num espaço comprimido, poeticamente tem algo do estiramento de limites que vemos, por exemplo, na obra de Giacometti, outro ``clássico" a ocupar lugar ``desviante" na linhagem hegemônica que conhecemos da arte moderna. Tanto aí como na pintura de Kline, as coisas se revelariam mediante o trabalho paciente de superação de distâncias e conquista sucessiva de limites. Entre nós, brasileiros, poder-se-ia dizer que a mesma soma incongruente de urgência expressiva com desconfiança de uma disponibilidade incondicional da linguagem está presente na obra de Mira Schendel. Talvez a aproximação com Amilcar de Castro também possa esclarecer algo deste gesto entre expressivo e calculado na corda bamba, que marca toda a pintura do norte-americano.
De resto, caberia dizer que, ao invés de lançar luzes sobre a maneira peculiar com que a obra de Kline alia apego à tradição a uma visão entre sóbria e cética dos arrebatamentos do sujeito, num mundo que inexoravelmente ia escapando à jurisdição deste, o autor parece mais preocupado em esconjurar o que vê como uma incontinência metafísica do expressionismo abstrato, e em nos sugerir que a relativa contenção da obra do artista é já sentimento premonitório do pragmatismo minimalista ou do desencantamento promovido pela pop nos anos subsequentes.
Contudo, o reconhecimento da lateralidade de Kline no âmbito do expressionismo abstrato só faria sentido se Anfam tivesse sido capaz de nos explicá-la sim como um certo classicismo, mas paradoxalmente instigado pelos imperativos (e pelo caráter contingente) da ação. Uma ação -e aí está a sutileza da obra- que deveria sempre se submeter à resistência das coisas, do real, no fim das contas. Este parece-me o mais eloquente traço contemporâneo da pintura de Kline, mais do que certas convergências formais com a imagem fotográfica.
Foi justamente o ``classicismo" de Kline que o manteve à distância dos dilemas que logo se apresentaram ao expressionismo abstrato: ``A tensão oriunda da oscilação solitária e perigosa do pintor, à margem do absurdo, é absorvida pelo melodrama popular da ruptura técnica, comparável à invenção do transistor. (...) Com o sentimento de crise deslocado pelas alegrias do profissionalismo, restou apenas produzir rótulos de angústia e espontaneidade" (Rosenberg, Harold. ``The Anxious Object". Chicago e Londres, The University of Chicago Press, 1982, págs. 43-45, passim).

O catálogo de Franz Kline pode ser encontrado no Whitney Museum of American Art, em Nova York, ou no Museu de Arte Contemporânea de Chicago

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