São Paulo, segunda-feira, 5 de junho de 1995
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O círculo doloroso

ALCIDES VILLAÇA

O Homem da Mão Seca
Adélia Prado Siciliano, 184 págs. R$ 11,00

Trata-se de um livro em prosa de Adélia Prado; preparemo-nos, pois, para uma permanente provocação do poético. Se em seus versos Adélia não desdenha os mistérios do cotidiano mais imediato, surpreendendo em miúdos pormenores uma carga de revelação, tampouco nas narrativas cederá qualquer espaço à crônica ligeira ou ao registro pitoresco, cujas aparências perfura impiedosamente para lhes sondar algum veio essencial. Todos os livros de Adélia são desdobramentos da mais ``clareza lispector" de que nos fala neste a escritora mineira.
Este livro toma a forma de um caderno, o caderno de Antônia -projeção transparente da autora, tanto quanto parecem ser transparentes as projeções de sua cidade, de sua família, de seus amigos e conhecidos. A sucessão das páginas faz pensar num diário assistemático, denso, confessional, especulativo, em que os acontecimentos menos se relatam do que constroem a própria narradora. O leitor é introduzido num círculo doloroso que vai da experiência à sua repercussão emocional, do fato à sua investigação, do situado ao revolucionado.
O doloroso desses movimentos é que a verdade de cada um é sempre provisória, na permanente transformação em que se encontra Antônia diante de seu passado e de seu cotidiano, engolfados ambos na crise da mulher madura a um passo da velhice. Uma dor de dente, uma paixão perturbadora e a semidemência na menopausa compõem fisicamente a vertigem de Antônia e se tornam sua ``estação no inferno", base existencial da angústia de um espírito sem repouso.
O sentimento de Deus convive com investigações teológicas, razões e paixões disputando pelo predomínio da lucidez combativa (à feição de um Cristo lutador) ou da resignação superior (ao modo de Maria, que ``aceita e louva"). O desígnio de humildade de Antônia é a todo momento posto a prova nos confrontos domésticos, na apreciação rigorosa e intolerante dos gestos próprios e alheios, nas diferentes pautas da compreensão de Deus e de si mesma. Com Deus dá-se o diálogo mais sofrido e fundamental, eixo que condiciona o equilíbrio de todas as vivências e que ao mesmo tempo depende delas para se constituir.
Está visto que o caderno de Antônia tem a mais dolorosa das confissões, porque trata da mais pessoal das crises. A resistência à hipnose no tratamento dentário e o recurso às sessões de psicanálise sinalizam externamente os atropelos íntimos de Antônia, que repete sonhos com casas e recém-nascidos como quem quer renascer no domicílio de si mesma. O título do livro traz dos evangelhos a passagem em que o poder de Cristo regenera o que se esterilizara (Marcos, 3, 1-6); o ponto de chegada do livro é a imagem de um gesto que faz Antônia renascer. Na travessia, seus tipos, suas linguagens, seus hábitos, muito do que ainda sobrevive de raízes arcaicas.
Vale dizer que, mesmo num turbilhão psicológico, a narradora não perde de vista os caracteres humanos que foram sempre referências suas: Osmarina e a poesia espontânea de sua fala, por exemplo, encarnam o universo de uma cultura complexa na aparência mais tosca (filão que Guimarães Rosa filigranou). Os leitores de Adélia estarão familiarizados com essas passagens do mais prosaico ao transcendente, estratégia pela qual a inquietação cósmica e a cárie dolorida correspondem-se dentro do humano e fora de qualquer hierarquia. Na prosa ou na poesia, no caderno de anotações ou no das ``poéticas", o centro é o mesmo, com a diferença de que nos poemas se fala ``de modo perfeito, com balanço", impondo-se neles a mais intensa ``radiação".
Como ocorre em todos os seus livros, em ``O Homem da Mão Seca" Adélia atua de modo a expor o coração selvagem, a sensibilidade brutal que, no entanto, se sabe forçosamente construída no jogo das formas e das palavras. Essa tensão tem a malícia daquela ``candura que gera astúcia", para glosar o velho Machado. Se não quiser resistir à espiral em que circulam os paradoxos de Adélia, passando a cada vez em plano diferente pelas mesmas controvérsias cruciais, o leitor acolherá com empatia dolorosa os dramas de Antônia e as provas de sua lucidez em processo. Se lhe couber, porém, o mais cauteloso dos distanciamentos, preservando o gosto consumado e as reservas ideológicas de todo tipo, quem sabe não lerá este caderno de Antônia com complacência masculina, lógica e materialista, para a qual, obviamente, ele não foi escrito.
Olhos menos domesticados lerão, na escrita dolorosa, também a divertida maledicência, algum ``nonsense" e muita ironia de Antônia. Meu gosto pessoal lhe pediria que se detivesse mais no painel de tipos, que entrasse mais fundo e mais largamente no microcosmo da cidadezinha de Coronas. Uma sugestão quem sabe imprudente, egoísmo de quem ainda quer sorver a vida no cada vez mais raro mundo das experiências de carne e osso, que a poesia teima em preservar. Em todo caso, Adélia não precisará nunca acautelar-se contra o documental, o saboroso, o croniqueiro: na perspectiva em que se instalou desde ``Bagagem", na poesia, e ``Solte os Cachorros", na prosa, os mistérios humanos ou divinos, estarão sempre incluídos na forma de viver dos simples e dos atormentados.

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