São Paulo, segunda-feira, 5 de junho de 1995
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O artista e as formas

VICTOR KNOLL

Idea: A Evolução do Conceito de Belo
Erwin Panofsky tradução: Paulo Neves Martins Fontes, 259 págs. R$ 21,00

Panofsky persegue o conceito de Idea e sua relação com o belo a partir da teoria platônica das Formas e das interpretações que lhe impuseram os latinos e os neoplatônicos. A interferência aristotélica é também apontada, seja com um propósito corretivo, seja para atender determinado corpo teórico. Embora a estratégia do texto assuma a abordagem da Idea e do belo segundo o curso histórico linear, desde a Grécia clássica, passando pelos tempos medievais até o século 17, o Renascimento é uma referência constante para a inteligibilidade daqueles conceitos. Panosfsky surpreende nas teses renascentistas sobre a produção artística, até mesmo, o embrião de uma estética do Gênio. Nesse itinerário são revistos Cícero, Sêneca, Plotino e no alvorecer dos tempos modernos Alberti, Zuccari, Bellori ocupam a cena teórica.
Apesar do estatuto que Platão atribuiu à pintura e à escultura em sua ``República", simulacros do real, a teoria das Idéias exerceu o papel de referência na compreensão da criação artística. Por força de uma engenharia conceitual a teoria das Idéias passou a ser solidária da arte. Sofreu tais interpretações que a tornaram dócil ao universo artístico. Já a Academia e depois os neoplatônicos incorporaram o ponto de vista aristotélico para tornar possível a ``aplicação" da teoria das Idéias à arte. A Idéia já não mais é vista como arquétipo, mas como representação depurada da natureza, como modelo, projeto ou ``imagem interior" tida como origem da obra. O corretivo aristotélico foi definitivo. O imitar não é copiar o dado sensível. A imitação artística rivaliza a criação da natureza e a corrige. A arte mostra a Idea.
De um lado, a teoria da arte terá em seu horizonte o conceito de Idea, de outro, resta por resolver de que maneira a doutrina das Idéias, a partir da qual Platão estabeleceu a inferioridade da arte, pôde sofrer tais adaptações a ponto de ter o seu sentido invertido e se constituir em um conceito próprio para o esclarecimento da atividade artística. Encontramos já em Cícero a inversão do sentido conceitual da Idéia platônica -preparando as concepções renascentistas- a ponto de fazer do próprio conceito de Idea uma arma contra a concepção de arte de Platão.
Panofsky lembra esta passagem de Cícero, para ilustrar a mutação de idea em ``imagem interior": ``...quando esse artista (Fídias) trabalhava na criação de seu Zeus e de sua Atena, ele não considerava um homem qualquer, isto é, realmente existente, que teria podido imitar, mas em seu espírito é que residia a representação sublime da beleza; é ela que ele olhava, é nela que mergulhava, e tomando-a por modelo dirigia sua arte" (pág. 16). Cícero atribui a Platão tal concepção e indica que a designava pelo termo Idea. Platão que expulsou o artista da cidade é agora, segundo Cícero, o seu mais vivo promotor. A inversão na posição da arte, de ``ré condenada" a ``cidadã livre" se deveu à deslocação da Idea de ``essência metafísica" para ``conceito".
``Aristóteles já havia substituído o dualismo que opunha, no plano de uma teoria do conhecimento, o mundo inteligível e o mundo sensível por uma síntese recíproca entre a universalidade do conceito e a singularidade da representação individual, no plano de uma filosofia da natureza e da arte, e também por uma relação sintética recíproca entre a forma e a matéria" (pág. 22). De resto, Panofsky lembra esta proposição lapidar de Aristóteles: ``É um produto da arte tudo aquilo cuja forma reside na alma (no espírito do artista)" (``Metafísica", VII, 7, 1032a). Cícero reúne em uma só concepção a ``forma interior" de Aristóteles e a Idéia platônica. Entretanto, tal conciliação deixava em aberto um problema: o que garante à obra de arte perfeição? Panosfky reconhece dois caminhos: ``ou recusava-se à Idéia, doravante identificada à `representação artística', sua alta perfeição, ou conferia-se a essa alta perfeição uma legitimidade metafísica" (pág. 14). Sêneca responde pela primeira solução, enquanto o Neoplatonismo, em particular Plotino, pela segunda.
Na concepção de arte medieval já não se impõe uma explicação das relações entre o homem e a natureza, mas trata-se de concebê-la como projeção de uma imagem interior no meio sensível. ``Imagem interior" e ``Idéia" não possuem a mesma carga nocional, uma vez que este termo passou a servir sobretudo à teologia; mas não é falsear a verdade histórica estabelecer um continuidade entre uma e outra. ``Dante, evitando intencionalmente utilizar nesta passagem o termo `Idéia', resumiu numa única formula lapidar o sentido da teoria medieval da arte: `a arte encontra-se em três níveis: no espírito do artista, no instrumento que ele utiliza e na matéria que recebe sua forma da arte' "(pág. 44, a citação de Dante é ``Da Monarquia", II, 2).
Para o Renascimento, o real se aloja em uma razão imanente à natureza. Cabe ao artista imitar a natureza. A noção de imitação, mais uma vez, é guinada à posição de categoria estética e com ela convive o neoplatonismo renascentista. Contudo, ao lado da imitação da natureza, afirma-se o triunfo da arte sobre a natureza; afirma-se o poder da imaginação. Pede-se ao artista fidelidade à natureza e, ao mesmo tempo, que escolha na diversidade natural o que há de belo. O pintor deve procurar nas partes o que é belo para reconstruir um todo.
As concepções artísticas do Renascimento deslocam o objeto do âmbito da representação subjetiva para o ``mundo exterior". O alvo era pautar a atividade criadora do artista por regras firmes e cientificamente fundadas. Pressupõe-se leis universais independentes e anteriores ao sujeito e ao objeto. Tal era a referência para a teoria da arte. Alberti irá ditar o sentido da ``nova arte" por oposição a uma metafísica da beleza de inspiração platonizante.
A beleza não é mais vista segundo o acordo da representação com a Idéia ou segundo a preexistência da Forma no espírito do artista, mas conforme diz Alberti ``a beleza consiste numa harmonia e num acordo das partes com o todo, segundo determinações de número, de proporcionalidade e de ordem, tais como o exige a `harmonia', isto é, a lei absoluta e soberana da natureza" (pág. 53). Pela primeira vez o ``belo" e o ``bem" são reconhecidos em esferas independentes; já está aí o reconhecimento da autonomia da estética que somente no século 18 irá encontrar o seu pleno desenvolvimento.
O Renascimento propõe duas inversões de significação do conceito de Idéia: 1) adquire um sentido naturalista (a teoria platônica é totalmente abandonada); 2) por força

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