São Paulo, quinta-feira, 8 de junho de 1995
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Tango é mitologia dos punhais sem lâmina

CARLOS HEITOR CONY
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Uma forma de caminhar pelo mundo -foi assim que Jorge Luis Borges explicou o tango, sem procurar defini-lo. Na prosa ou no poema, ele tentou penetrar nesse universo complicado, nessa ``mitologia dos punhais", nessa ``canção de gesta perdida em sórdidas notícias policiais".
É muito mas é pouco para se entender o tango. Como acentua José Lino Grünewald em seu livro sobre Carlos Gardel, o tango é a única música popular que não pode ser cantada em coro, exige o solo, o drama pessoal, a catarse individual, a dor-de-corno, a saudade, a mãe enferma, a noiva fazendo vida nas esquinas, a irmã explorada pelo cafetão, enfim, a mitologia dos punhais sem lâmina, punhais que ferem mais porque atacam mais fundo.
Como todos os gêneros da música, teve origens obscuras. No caso do tango, o obscuro vai além da metáfora. Ele nasceu, cresceu e tornou-se internacional sem deixar o seu lado de sombra, de beira de cais, de tasca, de bordel.
Ao contrário de outras expressões da arte popular, que acompanham exaltações ou depressões da alma coletiva que as fazem gerar, o tango foi produzido no virar de um século em que a Argentina de maneira geral, e Buenos Aires de maneira particular, estavam no topo, eram um pedaço da Europa civilizada e rica num continente miserável.
Ditaduras
Os tempos mudaram, as sucessivas ditaduras militares arrebentaram com o país, paradoxalmente, à medida em que a Argentina tornou-se igual a seus vizinhos, o tango choroso, corneado, enfermo, entrou em decadência. Ficou, porém, eternizado como uma ruína, ruína que já está pronta para atravessar o tempo -como outras ruínas gloriosas que a humanidade recolheu do seu passado.
Muitos consideram o gênero anedótico, justamente pelo apelo sentimental e brega que atravessa a maioria das suas letras.
É um preconceito brasileiro de enxergar com inveja um repertório que criou obras-primas em letra e música, mesmo levando em conta que um dos maiores letristas era o brasileiro Alfredo le Pera, nascido em São Paulo, autor dos antológicos ``Cuesta Abajo", ``El Dia Que Me Quieras", ``Por una Cabeza", que estava com Gardel no mesmo avião do desastre em Medellín (Colômbia), sem realizar o desejo que ambos tiveram de morrer em Buenos Aires, ``tierra florida done mi vida terminaré".
E se Le Pera foi grande, Enrique Santos Discépolo foi maior. Como Garcia Lorca naquele poema de Antonio Machado, é o ``mais poeta de todos", embora tenha sido músico também.
Seu ``Cambalache", escrito nos anos 30, pode ser considerado o logotipo de um século: -``Siglo veinte cambalache, problemático e febril!... El que llora no mama y el que no afana es un gil". (Gil é otário em dialeto lunfardo). Sem esquecer o primeiro e definitivo verso: ``Que el mundo fue y será una porquería ya los sé..."

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