São Paulo, sexta-feira, 9 de junho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Onde estava o gás?

ANTONIO CARLOS SPIS

Quem percorreu as regiões centrais da cidade de São Paulo na sexta-feira, 2 de junho, viu a maior parte dos postos de gasolina sem filas e com combustível para vender. Já na segunda-feira, nos bairros, foi possível ver os inconfundíveis caminhões das distribuidoras de gás de cozinha, com sua musiquinha estridente, fazerem a alegria das donas-de-casa com o retorno da venda do produto a domicílio. Nada mal, tendo em vista a catástrofe iminente alardeada pelo governo e repetida pela maioria dos meios de comunicação poucas horas antes.
Mas, afinal, o que aconteceu de verdade? Como foi possível uma normalização tão rápida do abastecimento de derivados no maior mercado do país se, ainda na quinta-feira, a greve dos petroleiros estava sendo responsabilizada pelo suposto colapso da cidade e pelas agruras da população mais pobre, impedida de cozinhar pela falta de gás?
A volta do abastecimento de derivados em tempo recorde foi possível porque não houve quebra dos estoques. O gás de cozinha voltou a ser vendido normalmente na segunda-feira porque ele não deixou de ser produzido e importado em quantidades suficientes para suprir as necessidades da população.
O Brasil importa pelo menos 40% do gás que consome. Durante a greve importou muito mais, assim como importou um volume enorme de outros derivados, gastando pelo menos R$ 1 bilhão contra a greve, quando o cumprimento do acordo assinado em 94 custaria apenas R$ 14 milhões por mês aos cofres da Petrobrás.
Além disso, nós, petroleiros, firmes no propósito de evitar maiores danos à população, mantivemos uma produção mínima de 30% de gás de cozinha em duas refinarias e de 30% de gás natural (canalizado) em quatro plataformas marítimas. Some-se a isso o fato de que havia estoques suficientes para 15 dias de consumo normal e logo se vê que há algo de podre no reino de FHC.
A verdade é uma só, como denunciamos desde o início da greve: houve uma ação criminosa, cujas responsabilidades precisam ser apuradas, no sentido de privar a população do gás e demais derivados de petróleo, obrigando-a a ``pegar" filas e pagar ágio, visando jogá-la contra os petroleiros. Essa ação, na qual estão certamente implicadas grandes distribuidoras privadas de gás e combustíveis, começou antes mesmo da deflagração da greve e tomou maior vulto a partir do segundo dia de paralisação.
Com a suspensão do movimento começam a vir à tona extratos da realidade, que devem nos permitir recompor os acontecimentos e localizar os verdadeiros vilões dessa história. O próprio presidente do Sindicato dos Revendedores de Gás do Estado de São Paulo declarou a um grande jornal que ``as empresas guardaram estoques para colocar a população contra os petroleiros". Diretores do Sindicato do Comércio Varejista de Derivados de Petróleo do Estado de São Paulo vão na mesma linha. ``É sabido o interesse das distribuidoras na quebra do monopólio da Petrobrás", dizem eles, para quem ``é estranha" a rapidez com que agora vem sendo feita a distribuição.
Os primeiros indícios de que a questão do gás seria utilizada pelo governo contra os trabalhadores da Petrobrás apareceram ainda em meados de abril. Vários órgãos de imprensa ``alertavam" a população para a possível falta de gás, quando nem sequer se sabia das perspectivas de duração do movimento. O mesmo já havia ocorrido na greve de outubro de 94, quando os donos de jornais, rádios e TVs enviavam seus repórteres aos sindipetros em busca de declarações sobre a ``iminência" da falta de combustíveis e gás. Para sua frustração o então presidente Itamar Franco negociou um acordo com a categoria, e a greve foi suspensa em 6 de outubro, sem o tal ``colapso do abastecimento".
O trabalho de desinformação da população na última greve levou a um desnecessário aumento da demanda de gás de cozinha da ordem de 40%. Esse aumento da demanda e a sonegação do produto pelas distribuidoras provocaram as enormes filas que a televisão mostrava a todo momento. Gente simples, mais suscetível ao noticiário oficialista da Rede Globo e congêneres, madrugou diante dos pontos de venda para comprar um ou vários botijões de gás para se prevenir de uma escassez que não existia.
Poucos veículos se preocuparam em orientar a população para que evitasse estocar gás em casa. Poucos se deram ao trabalho de lembrar que um botijão de gás dura pelo menos 20 dias para uma família de quatro pessoas e que bastam dois botijões em casa para vencer, com folga, 30 ou 40 dias de greve. Ao contrário, a Rede Globo e outros veículos tentaram usar o drama de um incêndio numa favela de São Paulo para insinuar que a culpa era da greve dos petroleiros. Todos sabemos que muitos favelados nem sequer ganham o suficiente para comprar fogão e botijão de gás, sendo obrigados a cozinhar sempre com gravetos e folhas de jornal.
Enquanto os meios de comunicação alimentavam o pânico do desabastecimento, criando a cortina de fumaça necessária para a ação criminosa dos distribuidores, o poder público mantinha-se omisso diante do sofrimento da população. Quando o prefeito de Santos, Davi Capistrano, rompeu esse esquema, fazendo blitz nas distribuidoras de gás de sua cidade e obrigando-as a levar os botijões aos bairros e à periferia, a mídia não cedeu qualquer espaço para a notícia.
Essa greve deixa muitas lições. De nossa parte analisaremos, no devido tempo, todas as suas implicações, não só para os petroleiros, mas para todos os trabalhadores. Para a população, a lição essencial é que não se deixem mais manipular pelos porta-vozes do governo, exercendo seu direito à crítica e a uma informação isenta e objetiva.

Texto Anterior: Faltou gás, mas o Brasil ganhou
Próximo Texto: Marciano; Santos e Simão; Sexo e adolescência; Saudade do AI-5; Quem?; Retranqueiro; Produtivos; Ame-o ou deixe-o; O que preenche bem
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.