São Paulo, domingo, 11 de junho de 1995
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Marketing, jornalismo e isenção

MARCELO LEITE

O concubinato de conveniência entre marketing e jornalismo ainda não produziu prole capaz de fundar uma dinastia, mas já espalhou alguns bastardos pela imprensa brasileira. Um deles é o que se poderia chamar de matéria paga gratuita, na falta de apelido menos contraditório.
Submetidos à alta dos preços do papel e à concorrência de outros meios, jornais e revistas recorrem cada vez mais a promoções para manter ou elevar as tiragens. Fascículos, CDs, sorteios -há apêndices para todos os gostos nas bancas. As pessoas compram, sinal de que a estratégia está correta (ou seja, funciona, conforme a lógica estreita dos tempos atuais).
O abastardamento do jornalismo não decorre dos próprios brindes, alguns dos quais até podem ajudar a educar este país inculto. O problema está no uso do já racionado espaço editorial -aquele destinado a notícias e reportagens, não a anúncios- para a promoção dessas iniciativas estranhas às redações.
Neste terreno, a maioria dos jornais e revistas têm telhados de vidro. Das reportagens da Folha sobre seus atlas às do jornal "O Estado de S.Paulo sobre os encartes da revista "National Geographic que está para lançar, não faltam exemplos de anúncios fantasiados de notícias. Não são poucos os leitores que percebem esse desvio e se queixam, indignados, ao ombudsman.
Este não é, com certeza, o maior problema dos jornais. O leitor aprende rapidamente a reconhecer essas "matérias pagas (uma prática nefanda do jornalismo em extinção nos mercados de opinião mais desenvolvidos, como o paulista) e pode renunciar a lê-las, assim como pula anúncios que não lhe interessam.
Resta, contudo, uma questão de princípio: onde vai parar a já problemática objetividade jornalística, quando o texto por escrever tem a obrigação preestabelecida de elogiar. Não há, nesses casos, o problema adicional da venalidade (os jornais e revistas não precisam pagar para vender o próprio gato por lebre), mas tais pseudo-reportagens representam no mínimo duas formas de desrespeito ao leitor: subtração de espaço normalmente ocupado por notícias no sentido pleno da palavra; frustração da expectativa crítica suscitada por todo e qualquer texto jornalístico.
Por essas razões, defendi internamente na Folha que essas comunicações passem a ser feitas na forma de anúncios. É uma proposta conscientemente ingênua, pois tem pouca ou nenhuma chance de ser seguida. Mas são os princípios, não as conveniências e cálculos, que devem nortear o trabalho do ombudsman.
Autocrítica
Mais delicada é a situação em que um texto deve dar satisfações ao leitor por falhas do jornal. A Folha sempre adotou a tática corajosa de recusar o axioma de Ricupero (o que é bom a gente fatura; o que é ruim, esconde).
Foi assim com o quase colapso da distribuição vivido pelo jornal em 9 de outubro do ano passado. Tem sido assim com os sucessivos atrasos na encadernação de fascículos. Nos dois casos, a Folha tomou o partido da transparência e publicou reportagens para dar explicações e informar as providências tomadas.
Uma dessas reportagens saiu domingo passado, sob o título "Encadernações atingem 87,6% dos fascículos (pág. 1-18). As informações apresentadas não exigem alteração das opiniões que já manifestei sobre o tema em outras colunas.
Como arremedo de despedida desse tema, ao qual só pretendo voltar se for imperioso, registro alguns comentários sobre o texto que ouvi da leitora Violeta Saldanha Kubrusly:
"Tive de esperar três meses para receber meu atlas. Esse título, `Encadernações atingem 87,6% dos fascículos', é lamentável. Parece que as estatísticas servem para enganar as pessoas. Minha leitura é que, depois de seis meses, nem 90% das encadernações estão prontas. Todo mundo faz autocrítica, por que a Folha não pode fazer?
Enviados especiais
Um assunto correlato, que envolve a contaminação de reportagens por interesses extrajornalísticos, virou assunto obrigatório entre profissionais do ramo nas últimas semanas: viagens a convite de terceiros.
Aqui também quase todas as publicações -e grande parte dos profissionais- tem poucas razões para atirar a primeira pedra. Apesar disso, a revista "Veja de 24 de maio abordou com seu habitual tom moralista uma viagem à Itália de "luxo nababesco (na descrição de um participante), organizada pela Alfa Romeo/Fiat para três dezenas de jornalistas brasileiros.
Foi um fuzuê. De respostas iradas a súbitos cancelamentos de participações já confirmadas em outras excursões, a categoria andou em polvorosa.
Tão certo como o fato de o sol levantar-se amanhã é que esses convites voltarão a ser aceitos em breve. De forma generalizada, e não só nas editorias de turismo, onde são moeda corrente.
Veja o que diz sobre isso o "Novo Manual da Redação, em sua pág. 15: "Jornalistas da Folha podem viajar a convite de instituições, governos ou personalidades. Se a viagem resultar em texto publicado, o jornal informa com clareza que o jornalista teve suas despesas pagas pelo patrocinador.
Para o jornal, esta cláusula de transparência parece resolver tudo. O leitor, de posse da informação sobre o custeio da viagem, avaliaria ele mesmo se o jornalista agraciado manteve-se isento e crítico na produção de seu texto.
O problema não é tanto o que se escreve, mas o que se deixa de escrever. É um beco-sem-saída ético. Se tiver razões para criticar o patrocinador e se decidir a fazê-lo, o jornalista estará sendo no mínimo indelicado; se não o fizer, é o leitor quem será traído.
A única solução para o dilema é tão conhecida quanto penosa: todas as despesas de jornalistas em missão deveriam ser pagas por seu empregador.
Esse ônus, nem mesmo a vestal "Veja se mostra inclinada a enfrentar. Na mesma reportagem, endossou o álibi preferido nas redações: "É possível que a viagem também seja útil ao jornalista, que pode arrumar algumas informações valiosas.
Em outras palavras, permanece aberta a porteira: cabe a cada jornalista e a cada publicação definir quão valiosas são as informações, a viagem e a própria dignidade.
Fico curioso para saber o que o leitor pensa disso.

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