São Paulo, domingo, 11 de junho de 1995
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Suspendendo as marteladas

RICARDO SEMLER

O menino perguntou ao escultor, que fitava um bloco de mármore, o que havia lá dentro. O artista sugeriu ao garoto que voltasse daí a algumas semanas, quando então viu um belo cavalo alado.
Surpreso, perguntou ao escultor como este sabia que havia um cavalo escondido lá dentro. Pois. Uma boa crônica é assim, emerge do mármore ou da tela sem esforço. E ultimamente só tenho ouvido marteladas ruidosas quando bato ao teclado. Resolvi, então, parar por um tempo.
Diz o Jung que se passa, entre os 35 e 45 anos, por uma transformação, pois já houve oportunidade de se provar ao mundo e procurar ganhos individuais. Agora interessam coisas que perdurem. Escrevo artigos há dez anos, mais de quatro dos quais neste valioso espaço que tanto premia a vaidade -a Folha é das poucas coisas de Primeiro Mundo que o Brasil tem. Já os tempos mudaram pouco e eu, como cronista, também não mudei o suficiente.
No começo resmungava de elites míopes e incompetentes, governantes corruptos e liberdades falsas. Estruturalmente nada mudou. Nossa mídia ainda é manipulativa, grande parte dos governantes é formada por bandidos, o país ainda é um paraíso fiscal para os ricos, e a injustiça dá de 7 a 1 no tal do justo. O Brasil não é uma democracia plena, só passou de republiqueta de banana a republicona embananada.
Convivemos com pessoas importantes qua apoiaram torturas e assassinatos, como se isso fosse sinal de maturidade e não de nossa covardia moral. Não posso ficar repetindo isso toda semana.
Há quase um ano consultei o jornal se não seria hora de abdicar da coluna. Fui dissuadido e dissuadi-me. Mudanças dependiam, afinal, de um esforço meu. Agora, chego à conclusão de que precisarei de tempo para mudar de tom, e não é justo forçar o leitor a esperar sentado. Posso escrever esporadicamente na página 3, ou fazer algum projeto especial com o jornal.
E tem mais. Escrever artigos ocupa um espaço mental de várias horas semanais, e o Jung mandou usar esse tempo para outras atividades. Não quero me transformar num desses tristes personagens que tanto critiquei aqui -que se aproveitaram de fama, dinheiro ou posição sem deixar nada em troca.
Passo a me dedicar, além da empresa, um pouco à fundação que criei com a renda do livro e que é, por enquanto, meu grande fracasso. Tem dinheiro em caixa, mas projetos inconsistentes. Isso está a mudar com a idéia de uma pequena escola que reúna crianças de mães que não as podem criar com outras de classe média, num ambiente de liberdade sui generis, desenvolvendo ainda talentos de jovens sem recursos.
Tenho também há três anos encalacrados uma peça e um segundo livro, e estes emitem grunhidos abafados do fundo de suas moradas nas minhas gavetas.
Assim, solto, com uma pontada no coração, este espaço no jornal. Gostaria que fosse por razão mais romântica -que pudesse culpar as forças ocultas, governadores que me processaram, presidentes que fomentaram perseguições às minhas empresas, prefeitos covardes que pagaram anúncios em nome de deputados com imunidade, ou mesmo os vários fiscais que foram condenados à prisão por tentativas de extorsão. Mas isso tudo era esperado e foi inócuo -a coisa é mundana mesmo.
Prometo tanto aos cúmplices quanto aos alvos que não estarei me aposentando, ainda. Faço a todos um sincero agradecimento, do coração, e deixo um entusiasmado até breve!

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