São Paulo, domingo, 11 de junho de 1995
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O fim do fetichismo

ROBERTO CAMPOS

"O mundo está ficando cada vez mais parecido com meus livros.
(André Malraux)

Não sei se chegamos, como dizem alguns sociólogos, ao fim das ideologias. Mas parece que no Brasil assistimos ao fim do fetichismo. Ensaiamos um lento ingresso na idade da razão. Esse o sentido da votação pela Câmara dos Deputados, em primeiro turno, a 7 de junho, da emenda constitucional que flexibiliza o monopólio estatal do petróleo.
É uma longa história. Como jovem economista, especializado em questões de desenvolvimento, assisti perplexo, no fim da década de 40, a controvérsias sobre o Estatuto do Petróleo proposto no Governo Dutra. A visão mais lúcida do momento parecia-me a do general Juarez Távora. Ele defendia a participação de empresas estrangeiras no refino e na distribuição de petróleo, desde que também assumissem o ônus de investir na pesquisa e exploração. O investimento de retorno certo deveria ser contrabalançado por investimentos de risco. Exatamente o contrário do que viria depois a prevalecer na lei 2.004.
Já como diretor e fundador do BNDE assisti, com perplexidade crescente, à mobilização passional da campanha do "Petróleo é nosso, no começo dos anos 50, quando Vargas retornava ao poder. O movimento me parecia tresloucado. Um abandono da razão em favor do fetichismo. Transformava-se um fétido combustível em unguento religioso. E uma sociedade anônima de economia mista em símbolo sagrado e encarnação da soberania.
A lei 2.004, de 1953, que criou o monopólio estatal, me parecia um absurdo econômico e um perigo estratégico. Assim o disse em alto e bom som, em conferência no fórum Roberto Simonsen em São Paulo, em 1955, ao denunciar os desvarios do "Nacionalismo Temperamental. Não sem sofrer as sinistras cominações aplicáveis, nas tribos indígenas, aos que desrespeitam os totens na floresta.
O monopólio era um atentado contra a lógica econômica e a teoria do desenvolvimento, porque esta pressupõe a maximização dos investimentos. O importante deveria ser o volume e a qualidade dos investimentos; o irrelevante seria a nacionalidade do investidor, ou seja, o fetiche do umbigo.
O monopólio da Petrobrás era exatamente o contrário. Rejeitava investimentos e monopolizava o risco. Que alguns economistas sérios endossassem essa maluquice, só encontra explicação no dito do chanceler alemão Adenauer: "Deus é injusto, pois criou sérios limites à inteligência dos homens mas nenhum à sua burrice.
O monopólio estatal me parecia também um perigo estratégico. Decisões de crucial importância ficavam entregues a um grupelho tecno-burocrático, frequentemente politizado ou ideologizado, sem o saudável acicate da concorrência e o balanceamento crítico de visões alternativas. Muitos anos se passaram sem que isso fosse percebido. Foi preciso a greve dos petroleiros, que tornou 150 milhões de brasileiros reféns de 50 mil sindicalistas -ou seja, 3.000 cidadãos reféns por petroleiro- para que a opinião pública sentisse o perigo. O monopólio estatal, que tem como contraponto o monopólio sindical, transforma o direito de greve em poder de chantagem.
Mais tarde, quando avançou o processo de redemocratização, apercebi-me de outra incoerência. Muitos que professavam purismo democrático não se davam conta da incompatibilidade intrínseca entre monopólio e democracia. O monopólio é uma cassação de direitos: o direito do produtor de produzir e o direito do consumidor de escolher.
A longa história do fetichismo oleoso, encerra algumas bizarrias. Uma delas é que entre seus promotores figuram dois eminentes udenistas, muito mais cultores do conforto burguês do que do apostolado revolucionário -Bilac Pinto e Afonso Arinos. O primeiro, como deputado, teve papel central na consolidação do fetiche monopolista na lei 2.004. O segundo, porque, constitucionalista eminente, insistiu em poluir a Constituição de 1967 pela inclusão do monopólio da pesquisa e lavra. E transformou essa poluição em desastre ambiental ao expandi-lo, na Constituição de 1988, para abranger refino, transporte e importação.
A segunda bizarria é que dois dos ministros mais vilipendiados pelos petrofanáticos -Eugênio Gudin e eu próprio- foram os que salvaram a empresa em situações críticas. Gudin, ao dar-lhe prioridade absoluta na alocação de divisas para importação de equipamentos, na demarragem do monopólio após a queda de Getúlio, num momento em que as demais importações estavam estranguladas pela crise cambial. Eu próprio, no governo Kubsticheck, capitaneando a revisão do imposto único sobre combustíveis, logrei transformar a tarifa de importação de combustíveis, que era a principal receita para financiamento da Petrobrás, expressa em cruzeiros corroídos pela inflação, em tarifa percentual ``ad valorem" sobre o custo cambial das importações. Em 1961, no governo Castelo Branco, contribui para a formulação de uma estrutura racional de preços ex-refinaria, destinada a refletir coeficientes técnicos de refino e despolitizar a fixação de preços. Gudin e eu éramos inimigos do monopólio. Mas éramos amigos da lei.
Sobrevivi suficientemente neste século, que Paul Johnson apelidou de século coletivista, para ver minhas posições pró-mercado e antimonopólio passarem de heresias impatrióticas a sabedoria convencional. Aqui, infelizmente, mais lentamente que no resto do mundo. É bom a gente ser provado correto no seu próprio tempo. A história foi mesquinha com dois grandes liberais, Octávio Bulhões e Eugênio Gudin -que lutaram e sofreram pelo liberalismo, enfrentando calúnias e objurgações, e não tiveram vitória no tempo que lhes foi concedido sobre a Terra. A vida é injusta, como disse o presidente Kennedy.
A votação de 7 de junho é apenas o início da transição da era do fetichismo para a idade da razão. Haverá um segundo turno de votação na Câmara, dois turnos no Senado e lei regulamentadora a ser estruturada. Os dinossauros estatais estão feridos, porém não mortos. E ainda assistiremos a insolências desvairadas da burguesia do Estado, confortavelmente instaladas nos monopólios e aferrada às suas benesses assistenciais. Sob certos aspectos é desalentador que na Rússia os monopólios estatais de telecomunicações, gás e petróleo, que operaram por mais de 70 anos, com forte embasamento ideológico, estejam sendo privatizados, enquanto no Brasil se fala apenas em flexibilização. Em memorandum de Fernando Henrique Cardoso, circulado no plenário, há um gesto de ternura para com a Petrossauro, com a virtual promessa de que não será privatizada, não sofrerá competição nas áreas em que opera e terá preferência quando houver empate em outras concessões. Teremos assim uma originalidade digna de um filme de Spielberg: um dinossauro de muletas... Considerando-se que a Petrossauro só explora oito bacias sedimentares, mas arranha 21 outras com toques superficiais, pode muito bem ocorrer que procure abocanhar o que há de melhor geologicamente, independentemente de sua efetiva capacidade financeira. É de se lembrar, aliás, que aquilo que a Petrossauro diz investir com recursos próprios é menos do que teria de pagar à União e aos Estados, se lhe fossem aplicadas as normas internacionais de tributação.
Definitivamente, o Brasil não se moderniza a jato e sim a prestações. Mas, como diz o provérbio asiático (que alguns dizem indiano e outros, chinês), uma jornada de mil milhas começa com um único passo...

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