São Paulo, domingo, 11 de junho de 1995
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NHENHENHÉM ÍNDIO NÃO QUER APITO

PLÍNIO MARCOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Personagens:
Mestre Roto - vestido com roupa de onça, sapato de crocodilo e óculos de tartaruga
Intelectual Lélio Jaguatirica - usa guarda-pó de professor, cachimbo e óculos
Buana Casca Grossa - general sempre com roupa de campanha
Ministro da Justiça Chupim - com roupa de juiz de direito
Japonês - índio de terno e gravata, aculturado
Índio-Índio - com roupa de índio e tênis

(Quando abre o pano, todos cantam em enorme confusão:)
Todos - Nhenhenhém, nhenhenhém, nhenhenhém, nhenhenhém, nhenhenhém, nhenhenhém...
Chupim - Chega de nhenhenhém! (Pausa) Chega! Estamos fartos de nhenhenhém! É nhenhenhém de trabalhador, é nhenhenhém de aposentado, e agora é nhenhenhém de índio. Porra! É como disse nosso grande presidente Pavão de Bico Comprido e Bunda Fria: "Chega de nhenhenhém!
Todos - Chega de nhenhenhém!
Chupim - Assim é que é. Já disse e torno a dizer: trocando esse nhenhenhém todo em miúdos, o que sobra é que índio hostil tem que saber que democracia é isso. Quando índio tem muita terra e não sabe aproveitar...
Índio-Índio - Índio sabe aproveitar.
Chupim - (Bravo) Não queira começar com nhenhenhém de novo! Porra! Índio não sabe nada. Índio é chucro. Madeira, ouro, cassiterita, todas essas fortunas se perdem na mão de índio.
Índio-Índio - Mentira! Índio não ser otário.
Buana - Chamou o ministro da Justiça de mentiroso! Tem que ser punido! (Avança para o índio.)
Chupim - (Detendo o Buana) Deixa ele! Ele quer encrenca. É só o que esse danado quer. Mas não vai ter. Nós, pacificamente, vamos demarcar as terras de índio. (Pausa) Vamos deixar índio com umas terrinhas. Branco aproveita melhor as riquezas naturais. Esse é um acordo justo que queremos fazer com índio.
Mestre Roto - Tem que ser desse jeito. Só assim podemos remanejar inteligentemente a floresta. O índio é indolente. Podemos enriquecer a floresta e a nós mesmos com espécimes de mais valor.
Jaguatirica - Essa tem sido minha tese. Com certeza meu livro sobre a completa aculturação do índio vai me levar à Academia Brasileira de Letras.
Mestre Roto - Sua tese é brilhante. Claro que vai pra Academia. O Sarney e outros tantos entraram, por que o Senhor Lélio Jaguatirica não há de entrar, defendendo essa tese humanitária da total aculturação do índio?
Jaguatirica - E depois, eu conto no meu livro várias histórias pitorescas. Por exemplo: os senhores sabem de onde vem essa frase: índio quer apito?
Chupim - Se não me engano, foi uma marchinha de carnaval. (Canta:) Índio quer apito, se não der, pau vai comer...
Jaguatirica - Realmente, foi uma marchinha carnavalesca. Mas tirada de um fato real. Quando um ex-presidente foi com sua ex-primeira-dama e toda uma comitiva conhecer os índios do Bananal...
Buana - Demagogo safado.
Jaguatirica - Teve toda uma cerimônia. O ex-presidente deu um presente pro cacique, o cacique pôs um cocar na cabeça do ex-presidente. A mulher do índio pôs um colar na mulher do ex-presidente. Aí, a ex-primeira-dama, emocionada, foi colocar um colar seu na primeira-dama índia e... peidou! (Ri.) É, peidou! (Ri.) O constrangimento foi geral. Todos ficaram mudos. E o cacique índio então falou alto: ``Mulher de chefe branco apitou". Foi uma gargalhada. Aí, um gaiato que estava presente voltou ao Rio e foi contando o caso. Até que o compositor escutou e fez a marchinha: índio quer apito, se não der, pau vai comer.
(Todos cantam a marchinha e depois param, cansados.)
Chupim - (Saudoso) Que saudade daqueles bons tempos em que índio só queria apito...
(Todos suspiram.)
Buana - Os senhores são homens muito inteligentes. Doutor Lélio Jaguatirica pode até ir para Academia com suas historinhas. Tudo bem. Só que esse nhenhenhém não leva a nada. A gente fala, nhenhenhém, e não leva a nada. E vira e mexe começa o nhenhenhém.
Mestre Roto - Calma, Buana. A tese do Jaguatirica é brilhante. Pega a raiz da questão. Ele coloca o problema com clareza. O que é melhor pro índio hoje? Deixar de ser índio!
Jaguatirica - Natural, mestre Roto. A aculturação do índio é o caminho natural. Hoje, o índio quer ser civilizado. Quer desfrutar de um bom som, ter geladeira, freezer, televisão colorida, antena parabólica e tudo mais... Quem quer morar na floresta?
Buana - Os senhores perdem muito tempo com índio. Uma ação pronta e rápida... dum-dum-dum, e adeus, índio!
Chupim - Isso é claro. Se o índio não concordar com a nova demarcação de terras, vai ter que ser removido, tá entendendo, Índio-Índio?
Índio-Índio - Índio entendeu. Índio não é burro.
Chupim - Então o que me diz? Concorda?
Índio-Índio - (Fechando a mão e empurrando o braço para baixo) Tripa-Tripa!
(Todos ficam pasmos. Índio-Índio canta e dança.)
Índio-Índio - Uuu-nucudum. Uuu-nucudum. Uuu-nucudum. (Pára.) Não no meu. Não no de índio.
Chupim - Índio-Índio dançou a dança da paz. Sinal que concordou com a demarcação.
Japonês - Índio-Índio não concordou. Cantou e dançou dança de guerra. Índio-Índio tá puto da vida. Não quer acordo.
Chupim - (Bravo) Não quer acordo? Olha aqui, índio safado, a gente quer fazer acordo. Mas índio é tinhoso, não quer. Assim fica difícil o acerto. Tenho que levar essa aporrinhação para o grande cara-pálida Pavão do Bico Comprido e Bunda Fria. Mas já vou avisando. Sei o que o presidente vai falar: ``Não me traga nhenhenhém de índio pra me aporrinhar". O grande chefe já tá de saco cheio. É trabalhador, é aposentado e não quer aturar mais nhenhenhém. Principalmente se estiver com dor na lomba. Agora, escuta bem, Índio-Índio. Se Índio-Índio não encher o saco, a gente manda o Bebeto da Cesta dar cesta básica pra tribo inteira. Porém... se Índio-Índio engrossar, aí as coisas vão ser resolvidas por nosso Buana Casca Grossa...
(Buana faz pose.)
Chupim - Se Índio-Índio não concordar, vai ver como fica. Índio porra-louca, espere a resposta.
(Chupim dá empurrão em Índio-Índio. Buana dá socos e pontapés no Índio-Índio, que cai no chão. Buana já vai pegando de porrada o índio Japonês. Mestre Roto socorre Japonês.)
Mestre Roto - Calma, Buana! Calma! Esse é Japonês. Índio amigo. Bom-moço e obediente. Estudou em escola de branco. Tem vergonha de ser índio. É aculturado.
Chupim - Ele é índio ou japonês?
Mestre Roto - É índio. Mas tem vergonha de nome índio. Como tem cara de japonês... chamam ele de Japonês.
Chupim - É um exagero. Nome, pai é quem coloca. Não precisa ter vergonha de nome.
Japonês - Eu ter nome escolhido por tradição da tribo. O nome me saiu feio.
Chupim - Mas como escolhem nome na tribo?
Japonês - Quando nasce filho, índio-pai abre janela. Primeira coisa que vê, nome de índio. Nasceu irmã de índio. Pai abriu janela, viu estrela brilhante. Nome de irmã de índio: Estrela Brilhante.
Chupim - Que coisa poética, bonita! Se não fosse índio ser tão ganancioso... Esse processo de escolha de nome é lindo.
Japonês - Quando nasceu irmão de índio, pai abriu janela. Primeira coisa que viu foi raio correr no céu. Nome de irmão de índio: Raio Ligeiro.
Mestre Roto - Formidável! É muito bonita essa forma de escolher nome. Não é mesmo?
Jaguatirica - Vou ter que pôr isso no meu livro.
Chupim - Belo! Belíssimo! E o seu nome como é?
Japonês - Quando índio nasceu, pai abriu janela e viu... viu... cachorro fudendo. Por isso me chamam de apelido de Japonês.
Chupim - É melhor o apelido mesmo. Japonês tá bom.
Buana - Mas vamos parar com nhenhenhém. Chega de frescura. Vamos espremer índio. Ou ele entra na nossa e fica civilizado, ou ferramos índio. Chega de amolação com problemas de índio. Por mim, boto pra quebrar. (Vai se empolgando.) Nosso querido Pavão de Bico Comprido e Bunda Fria tem que ser poupado. Se começar a fazer acordo com trabalhador, com aposentado, com índio, tá fudido. Fica zonzo. Fica tenso. Com dor na lomba. Tem que ficar de bruço na mão de massagista japonês de verdade. Já pensou? De bunda pra cima na mão de um japonês massagista? Se vacila... (Pausa. Depois fala, solene.) Não se esqueçam que foi assim, de bunda pra cima, que Napoleão perdeu a guerra. E há outros exemplos históricos. Então, vamos poupar problemas para nosso Pavão do Bico Comprido e Bunda Fria. Vamos pegar firme. Dum-dum-dum. E índios vão pras picas.
Chupim - Sei bem da eficiência dos seus métodos, Buana Casca Grossa. Mas, se pegamos duro os índios, o mundo inteiro vai estrilar. A esquerda berra. Naturalista sobe nas paredes como lagartixa. Partido Verde vai fazer escarcéu. Igreja progressista vai ficar cacarejando. Vai ser uma loucura.
Buana - Deixa gritar. A esquerda é oportunista. É só chamar esses filhos da puta e dar um emprego público pra eles. Aí, vão querer que índio se foda. O Pavão do Bico Comprido e Bunda Fria tá distribuindo cargo pro PT e tá calando bocas. O Maluf fez isso em São Paulo e deu certo. Hoje tem tanto ex-comunista no governo do Maluf que, se não fosse o programa dele ser tão burro, íamos ter a impressão que ele tinha virado marxista. A esquerdinha, com cargo público, vira direita. Essa gente é cheia de truques. Quanto à Igreja... essa não pode falar nada de índio. Sei bem como foi a história da catequese desses santos. Botavam aquele tuberculoso, o Anchieta, pra tossir na tribo. Cada tossida, metade da tribo ia pras picas. O que sobrava ficava fraco e indolente. Aí, a Igreja pegava as terras que queria. E só então começaram com esse papo de reforma agrária, reserva de índio, e tal. Aqui, pra esquerda! Aqui, pra Igreja! (Mostra dedo em forma de pau.)
Jaguatirica - Mas não é só católico que tá com esse papo de reserva de índios. Tem os missionários protestantes. Várias seitas elegeram porradas de deputados e senadores.
Buana - (Exaltado) Porra! Igreja é tudo a mesma merda. Estão sempre dos três lados. Ficam com a direita, com o centro, com a esquerda. No final, ficam com quem ganhar. Se a moeda cair em pé, eles ganham. E nós... (Começa a engasgar.)
Jaguatirica - Calma, Buana. (Bate nas costas dele.) Calma.
Mestre Roto - Japonês, corre, depressa! Pega um copo de água pro Buana.
Japonês - Pra já. (Sai.)
Chupim - Ele vai mesmo.
Mestre Roto - Claro que vai. Ele é índio bom e obediente. Como vêem, basta adestrar índio, que ele fica ótimo.
(Entra Japonês com água. Buana bebe.)
Chupim - Impressionante!
Jaguatirica - Vou colocar essa passagem no meu livro.
(Buana rosna.)
Jaguatirica - Claro que omitirei o nome do nosso querido Buana.

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