São Paulo, domingo, 11 de junho de 1995
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NHENHENHÉM ÍNDIO NÃO QUER APITO

PLÍNIO MARCOS

Chega de chiadeira de trabalhador, o presidente é generoso

Chupim - Meu caro Japonês, não assuma compromissos. Começo a fazer planos pra você. Vou aproveitar você no Palácio do Planalto. Quando chegar a hora da gritaria internacional pela causa dos selvagens, podemos muito bem mostrar nosso índio Japonês servindo água e café para os embaixadores estrangeiros que visitarem o nosso Pavão do Bico Comprido e Bunda Fria. Essa sacada vai fazer os estranjas encherem o bule. (Ri.) Vai ser um grande trunfo pro nosso presidente Pavão de Bico Comprido e Bunda Fria pôr na cara dos embaixadores e das correntes chiadoras. Não podemos deixar nosso chefe com dor na lomba, e ainda por cima embaraçado, por causa de problema de índio. Chega de chiadeira de trabalhador, de aposentado... Nosso presidente é generoso. Tem uma grandeza de alma! Perdoou o Lucena e todos os políticos que afanaram a gráfica do Senado. (Vai se empolgando.) Não fez nada pra impedir o aumento de salário dos políticos, compreendeu as necessidades econômicas dos parlamentares. Tem um convívio fraterno com inimigos políticos, como ACM e outros, que querem mandar nele. Até aceita palpites dessa gente que o hostiliza, sem nenhum rancor. Nosso chefe Pavão do Bico Comprido e Bunda Fria tem convocado para o seu governo gente que na campanha usou e abusou de ofensas contra ele, gente que espalhou que ele não acreditava em Deus. Imaginem! Em nome de Deus ele perdoou a todos. Gente que não se elegeu e que, se ele não ajudar, morre de fome... se... se... (Engasga de entusiasmo. Todos dão porrada nas suas costas.)
Mestre Roto - Índio Japonês, vai buscar água pro ministro.
Japonês - Pra já. (Sai.)
Jaguatirica - Se me contam, não acredito. Mas a história desse índio é exemplar. Mostra bem como, sendo amestrados, eles podem virar ótimos serventes. Não falei que índio quer isso? Ser amestrado, digo, aculturado? Com a tese que defendo no meu novo livro, vou pra Academia Brasileira de Letras, com certeza.
(Entra índio Japonês e dá água pra chupim, que bebe.)
Jaguatirica - Esse índio... eu garanto, aonde eu for lançar meu novo livro, fazer noite de autógrafo, ele vai comigo. Vai ser um assombro. Todos vão se admirar. Não só com meu livro, mas com a presença desse índio adestrado, digo, civilizado. Essa presença de índio vai ser forte, muito forte. Verão que índio não tem cabeça pra administrar floresta, mas pode ser muito útil.
Mestre Roto - Isso tem que ficar claro. Muito claro. Os selvagens tomando conta da floresta, são enganados facilmente. Os cartéis madeireiros e mineradores, formados pelos Estados Unidos, pelo Canadá, pela Suécia, pela Finlândia, deitam e rolam em cima de índio boboca. Naturalmente, esses cartéis não querem que a gente fique atenta ao problema do Amazonas. (Vai se exaltando.) Precisamos ser patriotas. O brasileiro tem que ser brasileiro. Patriota. Temos o exemplo do nosso Buana Casca Grossa, que está sempre pronto a se embrenhar na floresta para defender nossas fronteiras, seja de índio ou de quem quer que seja. Não podemos perder nossa soberania por causa de traidores ou de bobos úteis a serviço de inimigo. Essa canalha derrotista...
(Ele engasga. Todos lhe dão tapas nas costas.)
Buana - Índio Japonês, vai buscar água pra Mestre Roto.
Japonês - Pra já. (Sai correndo.)
Buana - Até eu estou impressionado com a dedicação, obediência e lealdade desse índio. Com certeza, meus senhores, se tivermos que entrar em campanha contra índios-índios, vou levar esse índio-japonês como meu batedor. Sinto que posso confiar nele. Isso é normal. Os grandes generais norte-americanos usavam batedores índios para descobrirem acampamentos de índios peles-vermelhas no meio do deserto, onde as tribos se escondiam.
Chupim - O índio Japonês está demorando.
Buana - Por terem sabido usar o índio amestrado, os generais americanos saíram vencedores. Nós também, usando nossa inteligência e determinação, e com batedores índios, venceremos os selvagens. Dum-dum-dum. Matamos todos. Depois, jogamos eles na Bolívia, que é pertinho, e dizemos que foi briga de garimpeiro, de traficante de cocaína, de contrabandista, e fim. Quem vai ligar pra um boliviano a mais ou a menos? O que conta é que índio boliviano tem tudo a mesma cara. São peles sujas. A polícia faz isso na favela do Rio e todo mundo aceita como briga de traficante. E se a imprensa chiar, cortamos anúncio do Estado. Se a televisão chiar, cassamos canal. Sem nhenhenhém.
Jaguatirica - O Japonês tá demorando.
Chupim - Será que ficou de saco cheio e fugiu?
Buana - Se fugiu, vou buscar o filho da puta na floresta e trago o maldito arrastado pelas orelhas. Faço isso, ou não sou mais o Buana Casca Grossa. Assim ele aprende a não folgar com gente de bem.
Jaguatirica - Ele aparece... Quer dizer, espero que sim. Mas, se não vier... paciência. Índio é índio. Vai ver esqueceu o caminho. De volta.
Buana - Essa indiada brasileira é uma merda. Já o que sobrou do índio americano é forte, esperto, rico, e até tem umas índias bem jeitosas.
Mestre Roto - Desisto da água. O Japonês nunca tinha falhado. Mas hoje pisou no tomate. Mas cuido disso depois. Agora quero contar um caso que vem em apoio ao que nosso Buana disse. Índio americano é esperto. Uma vez, fiquei hospedado num hotel numa reserva indígena. Uma maravilha! De dia, não se via um índio sequer. De noite, eles iam encostando seus cadilaques. Vestiam roupa de índio, dançavam, cantavam música de índio. Era um belo show. Depois, pegavam seus carrões e iam embora. Era outra coisa. Índio de Las Vegas. Gente fina.
(Entra índio Japonês com água.)
Mestre Roto - Olha quem está aí. (Para os outros) Vou dar um esporro nesse índio. Não reparem.
Buana - Esteja à vontade. Tem mais que esculhambar o bruto. Até ia bem umas chicotadas.
Mestre Roto - Onde você andava? Índio Japonês preguiçoso! Não sabia que eu precisava de água? Não sabia que eu estava sufocando? (Mestre Roto pega a água e bebe.)
Japonês - Desculpe, Mestre Roto. Japonês demorou porque tinha um homem branco sentado em cima do poço.
(Mestre Roto espirra água e começa a limpar a boca. Todos que beberam água fazem o mesmo.)
Buana - Filho da puta de índio! Fez nós todos bebermos mijo. Por isso que eu digo que não adianta perdermos tempo com essa corja. Ele fez isso de propósito. É sonso. Se faz de bonzinho e, se a gente se distrai, eles enfiam um punhal na nossa costela. Desde sempre eles odeiam homem branco. Foi sempre assim. Logo que os portugueses chegaram ao Brasil, eles comeram o bispo Sardinha. Comeram com casca e tudo. E comeram muitos outros. Papacus nojentos! Vamos poupar tempo. Vamos demarcar as terras dessas pestes. Raça maldita! Se eles quiserem, fujam pro Peru.
Chumpim - Diante dessa sacanagem que o índio Japonês fez pra gente, dando mijo pra gente beber, acabou o diálogo. Vamos agir.
Jaguatirica - A razão vence nosso sentimento.
Mestre Roto - Os senhores dobraram minha resistência. Chamem o Índio-Índio.
Japonês - Vem, Índio-Índio. Vem logo, que chefes tão putos da vida.
Índio-Índio - E daí? Quero que eles se danem!
Mestre Roto - Chegamos a um acordo, Índio-Índio? Vamos demarcar terra de índio. Só vai sobrar um pouquinho pra tribo de Índio-Índio.
Índio-Índio - No cu de branco não vai nada? Então, Índio-Índio vai agitar mundo inteiro contra branco canalha.
Buana - Escutaram? Peguem ele.
(Todos, até o japonês, dão uma surra no Índio-Índio e o largam caído no chão.)
Buana - Ganhamos. Agimos com energia. Terra de índio é nossa. Belo acordo.
Mestre Roto - Nesse momento, a Amazônia começa a crescer, a prosperar.
Jaguatirica - Meu livro sobre o índio vai explicar honestamente nossos propósitos. Quero todos os senhores no lançamento do meu livro. E espero que o Amazonas pague o meu fardão acadêmico.
Mestre Roto - Sem dúvida, professor Jaguatirica.
Chupim - Poupamos aborrecimentos para o presidente Pavão do Bico Comprido e da Bunda Fria. Isso é um exemplo para usarmos contra os aposentados. Viva o presidente!
Buana - Hip-hip-hurra!
Todos - (Cantando) Iaiá, me deixa subir nessa ladeira/Eu sou do bloco, mas não pego na chaleira... Lá vem o cordão dos puxa-sacos/ dando viva aos seus maiorais/ Quem vem na frente é passado para trás/ e o cordão dos puxa-sacos cada vez aumenta mais... (Vão saindo cantando.)
(Índio-Índio vai se levantando. Vira-se para o público.)
Índio-Índio - Quando Índio-Índio era pequeno, Índio-Índio ia na estação de trem vender cocar, flecha, arco, tigela, tapioca de índio pra homem branco, e chefe de estação lia tabuleta pra índio: ``Ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com Brasil". Hoje, diante dos novos políticos predadores, Índio-Índio sente uma puta saudade da saúva.

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