São Paulo, domingo, 11 de junho de 1995
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Sátira política traz obsessão purificadora

MARIO VITOR SANTOS
EDITOR DE REVISTAS

``Nhenhenhém", ou ``Índio Não Quer Apito", o mais recente texto de Plínio Marcos, dá continuidade à busca, que o autor realizou ao longo de toda a sua obra dramatúrgica, por um teatro completamente isento de hipocrisia.
É um estilo rude, em que a ausência de meias palavras e o absurdo das situações assume às vezes um teor de realismo insuportável, de naturalismo até.
Desde a estréia de ``Dois Perdidos numa Noite Suja", em 1967, seguida por ``Navalha na Carne", no mesmo ano, o dramaturgo se entrega a essa procura radical pela essência podre e corrupta que ele julga ter tomado conta das ações humanas.
Antes de tudo, não há contemporizações morais no teatro de Plínio Marcos. Isso explica em parte por que na década de 60 o sucesso de suas obras causava preocupação a Nelson Rodrigues, considerado um autor devasso naquele tempo.
Plínio Marcos é também o porta-voz dos submundos. Traz à tona um plano de vivências guardadas a sete chaves no cotidiano de todos, vivências que não podem jamais ser explicitadas no jogo social. Seu teatro é antiteatro porque não se detém diante do outro teatro, o das relações em sociedade.
Plínio Marcos não recua, mesmo que tenha que retirar parte de seu sustento da venda de livros que faz nas ruas do centro de São Paulo.
A regra parece ser a seguinte: quanto maiores são os interpostos sociais e mais completa sua marginalização como criador, mais prazer ele parece obter em fuçar as camadas rasas da personalidade, ali onde circulam livres os impulsos mais vis e mesquinhos.
Plínio Marcos tem uma missão. Ao contrário do que parece, de seu gosto pelas situações sujas, de seu texto poluído, direto, no limite da pornografia, emerge uma espécie de obsessão purificadora, o que denuncia um certo idealismo do autor, uma ânsia por um modelo de moralidade radical.
Esse compromisso, cumprido mesmo à custa de abertos desafios ao chamado bom gosto nos costumes e nas artes, está na base da discriminação de que ele foi objeto. Vêm também daí os episódios de proibição de suas peças durante o regime militar, sob a alegação de atentado aos bons costumes.
Dentro da linha provocativa do autor, esta ``Nhenhenhém" inova em um aspecto: seu aspecto explicitamente político. O texto precisaria ser encenado para que se pudesse avaliá-lo com rigor, mas há uma coerência com o restante da obra: as situações de absoluto ultraje.
As referências ao governo são claras. O discurso oficial, a respeitabilidade e a competência administrativa, advindas do fato de as autoridades terem educação sofisticada e serem pessoas de fino trato, são objeto do mais solene desprezo.
Denominado "Pavão de Bico Comprido e Bunda Fria, o presidente-personagem da peça é lembrado pela frase ``chega de nhenhenhém" e recebe constantes deferências verbais de seu ministro da Justiça ``Chupim". Este se une a um general (Buana Casca Grossa) e um intelectual (Lélio Jaguatirica) numa manobra para obrigar os indígenas a restringir a extensão de suas reservas.
Os índios são dois. Um é ``verdadeiro", chamado Índio-Índio. Outro é oportunista e sem caráter, chamado Japonês. Este serve copos de urina às autoridades, que pensam estar consumindo água.
À base de pontapés desferidos por Chupim e seu grupo, o índio verdadeiro acaba perdendo o direito a suas terras. Os índios são aqui metáfora de todos os que se convencionou chamar de parcela ``excluída" da sociedade.
A obra é mais uma chance para Plínio Marcos girar sua velha metralhadora contra igreja, governos passados, mineradores, escritores e intelectuais em geral, políticos e generais americanos.
O foco não é mais o homem e suas falhas, como em ``Navalha" ou ``Dois Perdidos". A crise social saiu do pano de fundo. A sátira política está no centro da peça, que, não só por isso, carece da força perturbadora e do impulso instintivo dos textos anteriores.
Mas estão lá a mesma linguagem rude, os palavrões, as metáforas amparadas em situações grosseiras. Materializam-se cadeias de palavras inusitadas e naturais, que de tão reais parecem conduzir o autor na trama, em lugar de serem produzidas por ele.
É das tarefas mais difíceis incorporar com autenticidade aos diálogos de uma peça o palavreado das ruas. Não há autor brasileiro que faça isso melhor do que Plínio Marcos. Por trás do que parece chulo está uma elaboração sofisticada, se não no momento da redação, em algum processo importante de decantação no cérebro do autor, a partir de sua vivência peculiar.
Como já escreveu o crítico Décio de Almeida Prado, o estilo de Plínio Marcos tem a mesma essência rude propugnada por Antonin Artaud, mas sem que se espere obter da sujeira qualquer cintilação lírica ou transcendental. Quando fala da sujeira, Plínio Marcos parece ter mesmo a pretensão de levar o espectador a um contato físico com ela, obter toda a repulsa possível.
Tudo ocorre em meio a uma trama simples, clara, direta e cômica, como se pode conferir na íntegra do texto que o Mais! publica hoje.

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