São Paulo, domingo, 11 de junho de 1995
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A pós-modernidade e o divã

MANUEL DA COSTA PINTO

Comecei a ler Freud num ônibus e nunca mais parei

Folha - Questões contemporâneas, como a da globalização das relações econômicas (e, portanto, sociais), não acarretam alterações essenciais nos conflitos vividos pelo indivíduo?
Mezan - Em análise, as pessoas falam de coisas muito simples (ou ao menos cotidianas) e o psicanalista extrai desse material trivial aquilo que pode ser trabalhado. Uma questão como a globalização aparece muito mediatizada -se é que aparece.
A psicanálise talvez seja muito extemporânea, de maneira que questões como a pós-modernidade aparecem no trabalho clínico só através de ecos distantes.
Você pode estabelecer uma relação, por exemplo, entre a dissolução dos códigos expressivos nas artes (da tonalidade na música, da história linear no romance) e as problemáticas da fragmentação e dissipação do núcleo subjetivo das pessoas. Mas é apenas um paralelo, assim como há paralelo entre a pintura expressionista dos anos 20, na Alemanha, e as fantasias psicóticas que Melanie Klein descreve.
Folha - A psicanálise pode contribuir com a crítica das questões relativas à pós-modernidade e à sociedade de massas?
Mezan - Quando se fala que a indústria cultural banaliza as coisas, isto só é verdade até certo ponto; pois, ao mesmo tempo, ela multiplica as possibilidades de acesso à cultura "high brow".
Quando Mozart queria ouvir alguma peça musical, ele dependia do programa dos teatros da época, ao passo que eu, se quiser ouvir "Don Giovanni", só preciso ligar o CD-player e ter a Sinfônica de Viena na minha sala, ou ver em videocassete um filme chinês ou macedônio e entrar em contato com uma vasta realidade geográfica, etnográfica e emocional. O meu mundo é maior que o de um faraó do Egito, com todo poder imperial que ele concentrava.
O problema é que a arte e a literatura têm um princípio aristocrático, segundo o qual existem obras grandes e imortais e outras que não o são. Toda a tradição iluminista e humanística é um esforço para tornar o indivíduo capaz de discriminação e de julgamento.
Portanto, a pasteurização de tudo -dizer, por exemplo, que um teatro mambembe é igual ao "Fausto de Goethe"- é uma falsificação criada pela dificuldade de discriminação.
O efeito disso, no Brasil, é a criação de guetos auto-referentes e até mesmo o empobrecimento da alma que se nota nos adolescentes, que têm um vocabulário reduzido a meia dúzia de interjeições e são incapazes de se exprimir. Como efeito da destruição do sistema educacional e da bestificação pela TV, foram criadas pessoas cujas possibilidades virtuais acabam massacradas e se tornam rudes, toscas em sua subjetividade.
Nesse contexto, a psicanálise, com a proposta de um mergulho dentro de si, nas condições do ``setting" analítico, acompanhado dia-a-dia, semana a semana, é uma experiência extraordinária, que pode favorecer a crítica desses ícones culturais e de seu questionamento no decorrer da análise.
Folha - Qual foi o primeiro livro de Freud que o sr. leu?
Renato Mezan - Foi de maneira totalmente casual que Freud caiu nas minhas mãos. Em 1974, depois de terminar o curso de filosofia na USP, comecei a me interessar em fazer mestrado. A Marilena Chaui ia me orientar e eu levei a ela uma lista de temas que achava interessantes e que estavam em evidência na época, como ideologia, alienação etc.
Ela me deu uma lista de uns 30 livros indispensáveis. O primeiro era o "Curso de Filosofia Positiva", de Comte. Fui até a biblioteca e o livro estava emprestado; o segundo da lista era "Conferências de Introdução à Psicanálise", de Freud. Eu achei interessante, pois não tinha lido nada dele e, casualmente, havia ali um exemplar em inglês. Peguei o livro e comecei a ler num ônibus de volta para casa -e nunca mais parei.
Fiquei impressionado. O preparo acadêmico que eu tivera não havia me instrumentado para trabalhar com um discurso como aquele, nem inteiramente demonstrativo, nem inteiramente ficcional -ao mesmo tempo uma grande obra literária, que persuade o leitor, se antecipa a suas objeções, leva em conta suas resistências.
Folha - E como esse interesse inicial se transformou em tese?
Mezan - Na minha turma de colegas cada um tinha escolhido um autor: Ricardo Terra tinha se dedicado a Kant, Renato Janine Ribeiro estudara Hobbes, Scarlett Marton se especializara em Nietzsche -e, no latifúndio filosófico, minha eira ficou sendo Freud.
Isto deu origem a "Freud: A Trama dos Conceitos", que foi a primeira tese sobre psicanálise do departamento de filosofia da USP. Não é propriamente uma abordagem filosófica, mas um trabalho que procura dar uma certa ordem ao modo como as questões de Freud foram se formulando em termos temáticos e cronológicos.
Folha - Como surgiu a idéia de "Freud, Pensador da Cultura", seu livro seguinte?
Mezan - Com a tese de mestrado debaixo do braço, fui para a França em 1977, para preparar meu doutorado. No primeiro ano, dei uma "peruada" geral: assisti cursos de Deleuze, Foucault, Barthes, os seminários de Lacan etc.
No ano seguinte, decidi que queria fazer análise e procurei Conrad Stein, autor de "A Criança Imaginária, que foi um dos autores que me marcou e que me acolheu de maneira generosa. Stein me deu uma série de orientações e recomendou alguns nomes de analistas. Comecei a frequentar as instituições psicanalíticas, fiz supervisão e um estágio de um ano e meio num hospital psiquiátrico.
Na França, escrevi minha tese de doutorado -"Freud, Pensador da Cultura"-, em que procurava fazer uma leitura não apenas interna da obra de Freud (como ocorrera no livro anterior), mas contextualizando-a na história da cultura centro-européia e no contexto do movimento psicanalítico.
Folha - Quando o sr. desviou sua atenção da obra freudiana para a obra dos continuadores da psicanálise -como ocorre no livro "A Vingança da Esfinge"?
Mezan - "Freud, Pensador da Cultura" coincidiu com um momento, na França, em que psicanálise era igual a Freud. O próprio movimento lacaniano, que foi uma renovação e expansão da psicanálise, se apresentava como um "retorno a Freud".
De volta ao Brasil, onde defendi o doutorado, fui trabalhar na PUC (Pontifícia Universidade Católica/SP) e no Instituto Sedes Sapientiae. Quando comecei a fazer análise aqui, percebi que as concepções que orientavam os analistas eram visivelmente diferentes das que eu tinha estudado na França.
Depois de algum tempo, achei que seria interessante estudar a psicanálise depois de Freud. Foi então que vim a descobrir que existiam Melanie Klein, Lacan, Bion, Winnicott e, nos últimos dez anos, tenho me dedicado a estudar estes autores pós-freudianos em meus cursos na PUC.
Folha - Esse trabalho vai se transformar num novo livro?
Mezan - Tenho cerca de 5.000 páginas com transcrições dos cursos. Minha intenção é fazer um livro de história da psicanálise do ponto de vista das idéias -e não da ótica do movimento psicanalítico, que já foi suficientemente estudado.
A relação das quatro principais escolas da psicanálise -psicologia do ego (de Hartmann), teoria das relações objetais (Winnicott), Klein e Lacan- com Freud é mais complicada do que eles mesmos tinham dito. Elas têm uma imagem de sua origem e de sua relação com Freud que equivale à auto-imagem que uma pessoa tem de si mesma. O romance familiar, que cada pessoa cria acerca de sua origem, pode ser encontrado, analogamente, quando os kleinianos escrevem a história de como Melanie Klein inventou suas teorias.
Cada escola tem uma versão de sua própria origem e da evolução da psicanálise, de tal modo que ela mesma seja a culminação dessa história, a continuação e expansão de certos aspectos da obra de Freud -e nisso forçosamente deixam as outras escolas de lado.
Freud tem uma obra tão fecunda que se deixa recortar sob diferentes ângulos, a tal ponto que André Green, perguntado durante uma conferência no Rio de Janeiro sobre o que havia de novo em psicánalise, respondeu simplesmente: "Freud". Ou seja, depois de tantas leituras de sua obra, o novo passa a ser o próprio Freud.

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