São Paulo, domingo, 11 de junho de 1995
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Pelo buraco da fechadura

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

``Quando lemos rápido demais -ou devagar demais- não entendemos nada." Essa frase de Pascal poderia servir de epígrafe para o primeiro livro de Leda Tenório da Motta, um dos trabalhos mais bem-vindos nesses tempos de carestia da crítica.
Com ironia e modéstia, qualidades também da autora, Pascal aponta para o que há de mais indecifrável na leitura. Pois, ao contrário do que possa ser uma primeira impressão, ``ler" não é coisa simples: é mais que um talento e mais que uma disciplina, e não se sustenta só pela erudição. Para o leitor, como para o poeta, é a bem dizer o tom, ou ``ritmo" (ou qualquer outra metáfora do que há de mais imponderável e pessoal na leitura) o que faz toda diferença.
Aprender a ler ironicamente frases como essa é uma das lições deste volume, que é também, aliás, um dos livros mais cheios de humor da crítica brasileira atual. Nos quatro ensaios sobre Proust, as ``deflagrações" -e reversões- do ``encantamento" servem para reinventar a "Recherche como comédia.
Nessa sequência de ``grandes e pequenos descontroles da frase", abrem-se, assim, as cenas ``avistadas pelo buraco da fechadura da linguagem" de que falava Roland Barthes, homenageado em vários pontos, com a devida reverência e distância.
Leda Tenório é uma grande contadora de histórias e esses ensaios ficam, estrategicamente, entre a reflexão teórica e o prazer de narrar. À maneira do próprio Proust -e de autores mais recentes, como Francis Ponge e Guimarães Rosa, também comentados- ela é capaz de passar, imperturbável, de um labirinto de ``provas" tipográficas do romance as ``provas" de amor exigidas pelo Narrador e as ``provas oculares" que vão acabar por convencê-lo, ou quase, das perversões sexuais de sua amada. É um solfejo da nuanças em torno à palavra ``provas", que faz pensar, igualmente, no Freud do livro do Witz, outro assunto de estudo.
À maneira também de Proust, o que se lê, aqui, é um contraponto insólito entre a linguagem da autora (tão educada!) e os temas ``afrontosos" que vão gradualmente surgindo, de acordo com um modelo de denegação que é o próprio modo do discurso amoroso proustiano.
``Toda chance de interpretar liga-se à sugestão de um ocultamento", escreve ela. Cabe ao crítico, então, repetir os movimentos de velamento e revelação do texto, com a habilidade conquistada de um ``retoricista tardio" e a confiança, ou ``clarividência cega" de todo bom escritor, ou leitor.
Em sua "Apresentação, Olgária Matos chama a atenção para o grande tema da nominação. Palavras e coisas não coincidem: alguns tomam o partido das palavras (``as coisas se passam como se a palavra `cachorro' mordesse"); outros, como Ponge, o partido, ou ``gana" das coisas.
Aos primeiros, cabe então ``enfrentar-se com o passado" -fazer de si algo a mais, que não só uma repetição, ou paródia. Aos outros, resta o equilíbrio desconfortável entre ``a impossibilidade de exprimir-se e a impossibilidade de descrever as coisas". É uma virtude da ensaísta que essa frase, no contexto, dá vontade de rir.
O mesmo se passa com esta, da "Recherche: ``Às vezes na vida, sob o golpe de uma emoção excepcional, a gente diz o que pensa." Pode-se muito bem ler esta frase a sério. Mas não na companhia da autora, que faz ressoar constantemente, nas entrelinhas, o humor tão judaico de Proust. Em exemplos como esse, Leda Tenório demonstra, com virtuosismo, que um crítico, afinal, é quem define o tom da leitura.
O que dizer do título? Proust, ficamos sabendo, preferia ver o seu livro ``não como uma catedral, mas como um vestido". Há ironias de todas as espécies -literárias, sexuais, religiosas- neste auto-retrato do maior autor do século como costureira. E são ironias que se harmonizam, com a devida dissonância, na polifonia de temas centrais do livro, entre os quais se ressaltam as questões da modernidade e da linguagem, complicadas pela experiência sexual.
Não é mera coincidência, neste aspecto, perceber como a ensaísta maneja as citações. Era Walter Benjamin quem sonhava escrever um livro inteiro só com citações de outros. Se ela não chega a tanto, salta aos olhos sua habilidade para encontrar o que quer, benjaminianamente, nas palavras dos outros. São iluminações recíprocas, e marcas de uma rara leitora.
Nenhum crítico, porém, seria capaz de sustentar por muito tempo uma prosa tão finamente descrente de si e tão atenta aos deslizes do significado. A Leda Tenório leitora de Proust é bem mais vigorosa que a comentadora de Valéry, ou a exegeta do humor com Guimarães Rosa. Ela está mais em casa na França burguesa do início do século do que, aparentemente em qualquer outro lugar. Mas isto é só mais um indício do que a distingue no horizonte da nossa crítica. O repertório e os temas que mais lhe interessam não são o repertório e os temas da maioria.
Entre os desejos velados e as reticências, entre as palavras e as coisas, sem esperança de um fundamento, Leda Tenório vai orquestrando Imezas, ``em pulos do cômico ao excelso". Para um leitor não muito rápido, nem devagar demais, é possível ainda escutar, por trás de tudo, o que ela chama de ``alegria arbitrária da imaginação" -uma alegria que, afinal, ela já traz proustianamente no nome.
Engana-se, portanto, quem a levar a sério demais, mas engana-se mais ainda quem não a levar a sério. Nesta humorista e contadora de histórias, esconde-se uma das mais refinadas estudiosas da literatura moderna, capaz de nos reeducar para o que já era e não era conhecido. E o estilo! Que grande crítica e que grande escritora.

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