São Paulo, domingo, 11 de junho de 1995
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A base da discórdia

LEOPOLDO DE MEIS
ESPECIAL PARA A FOLHA

A reportagem da Folha de S. Paulo com a relação de cientistas brasileiros com mais de 200 citações seguramente propiciou discussões fortes dentro da comunidade científica, que poderão ser úteis e construtivas, desde que ponderadas as limitações que a análise do banco de dados do ISI (Instituto para a Informação Científica) impõe.
Assim, como afirmado na reportagem, é difícil precisar o número de citações de todos os cientistas brasileiros, seja por erro de digitação do banco, seja por problemas decorrentes de utilização.
Dispomos de um banco de dados semelhante ao utilizado pela Folha. Há cerca de um ano as informações constantes deste banco foram colocados à disposição do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e de vários colegas da comunidade científica. Devo esclarecer que não forneci dados do banco que utilizo à Folha.
Todas as informações contidas no banco estão listadas com maior precisão em publicações do ``Science Citation Index", que são editadas pelo ISI e encontradas em diversas bibliotecas do país.
Temos usado as informações do banco para estudar a evolução da ciência no país.
Não enfatizamos o trabalho individual por entendermos que listas nominais costumam conter grandes erros, personalizando o tema sem refletir a relevância e a realidade da ciência no Brasil.
Seguem alguns exemplos negativos e positivos decorrentes da análise bibliométrica.
. Número de citações. Alguns colegas não constam da lista da Folha, embora o número real de citações de seus trabalhos seja superior a 200. Exemplos: José Antunes Rodrigues, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, aparece com 166 citações. A consulta a publicações da ISI revela que Antunes Rodrigues recebeu 237 citações no período.
Um outro exemplo seria Sérgio Verjovski-Almeida, que recentemente se transferiu da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) para a USP (Universidade de São Paulo) e consta no Banco com 166 citações. Um dos seus artigos mais citados aparece no banco da ISI com zero citações. Portanto, ele dispõe de mais de 220 citações.
Mesmo entre os citados na lista da Folha, há cientistas com mais citações do que o número obtido no banco. Um exemplo é Rogério Meneghini, que no banco aparece com 468 citações, mas na realidade recebeu 635 citações.
Estes erros, na maioria das vezes, omitem citações, porém, o erro de adicionar citações inexistentes é pouco frequente. Os colegas mencionados me autorizaram a citá-los nominalmente e confirmaram os números. É natural e muito justo que os excluídos da lista por erros se sintam prejudicados.
Por outro lado, um aspecto positivo a comentar é que, dentro da minha área de conhecimento, só encontrei na lista da Folha colegas que julgo de alta competência.
Destaco dois, pelos quais tenho particular admiração, por conhecer em maior detalhe seus trabalhos científicos: Ivan Izquierdo e Johanna Dõbereiner, autênticos e brilhantes brasileiros, por opção, e não por coincidência geográfica.
Estou certo que os colegas de outras áreas também também devem ser muito bons profissionais. Entretanto, não conheço suas obras científicas e assim não tenho como julgar sua dimensão.
. O valor relativo das citações. O número de citações permite avaliar se o trabalho foi lido e utilizado por seus pares dentro de uma área de conhecimento.
No período analisado pelo banco, 48,8% de todos os trabalhos publicados no mundo nunca foram citados. Os brasileiros mostraram um índice de ausência de somente 35,4%, um indicador que fala bem da nossa ciência. Este dado não foi mostrado na Folha.
Pela lista da Folha, há uma tendência errônea de julgar melhor aquele que tem mais citações, sem atentar para as características de cada área do conhecimento.
Uma vez que o trabalho é notado pela bibliografia internacional, a distinção de qual a contribuição mais importante somente pode ser conclusiva quando avaliada pelos seus pares na especialidade do trabalho.
É impossível comparar a importância de trabalhos como, por exemplo, um em bioenergética com 100 citações e outro hipotético na área médica versando sobre Aids com 300 citações.
Se nos restringirmos ao número de citações, o máximo que se pode dizer é que são bons trabalhos, mas é impossível dizer qual o mais inovador ou criador pois há muito mais pesquisadores trabalhando em Aids do que em bioenergética.
Esse quadro se torna ainda mais complexo quando comparamos áreas do conhecimento ainda mais distintas, como física e biologia.
Outro aspecto negativo é que a lista não inclui matemáticos e é escassa em outras áreas do saber onde muitos cientistas brasileiros se destacam. Este erro pode levar a conclusões equivocadas quanto ao desempenho de parte de nossa comunidade científica.
Há uma relação entre o número de citações, cientistas, trabalhos e revistas especializadas existentes em cada área do conhecimento.
O número de matemáticos no país é cerca de 10 vezes menor do que o de físicos e 28 vezes menor do que o de cientistas biomédicos (veja tabela).
O número total de trabalhos publicados pelos matemáticos é, portanto, proporcionalmente menor, assim como o número de citações. Por se tratar de área com menos cientistas, a chance de dois matemáticos trabalharem no mesmo tema é menor e, portanto, menor é a chance de serem citados.
O pequeno número de matemáticos não é uma característica de nossa ciência, mas sim uma tendência mundial. Isto pode ser avaliado pelo número de revistas indexadas pela ISI. O número de revistas que publicam trabalhos de matemáticos é cinco vezes menor do que o de revistas na área biomédica (veja tabela).
O número de artigos publicados em cada periódico biomédico por mês é diversas vezes maior do que na matemática. Há, portanto, no planeta muito mais cientistas trabalhando em áreas biomédicas do que em matemática.
Se normalizarmos a frequência de citações com o número de trabalhos e autores, então verificamos que o desempenho dos matemáticos brasileiros é muito parecido com o da física e das outras áreas do saber (veja tabela).
Um aspecto positivo é que a presença da física brasileira nas revistas internacionais é proporcionalmente maior do que a de outras áreas do saber. Isto se nota na tabela pela relação trabalhos de brasileiros por periódicos internacionais especializados em física.
Para finalizar, gostaria de apresentar exemplos em que o estudo de índices bibliométricos de forma não personalizada pode ser útil para entendermos a nossa ciência.
. Produção científica global no Brasil. O número de trabalhos brasileiros na bibliografia internacional tem aumentado nos últimos dez anos (veja gráfico). Trata-se de um crescimento real, uma vez que o número total de trabalhos publicados no mundo neste período tem-se mantido constante entre 800 mil e 1 milhão por ano.
Portanto, como mostra a figura, a presença brasileira na ciência mundial cresceu entre 1981 e 1992. Há um decréscimo em 1993, que pode ser sinal da escassez de recursos para ciência ocorrido a partir do governo Collor.
Nas ciências experimentais há um intervalo de dois a quatro anos entre o início de um projeto de pesquisa e a publicação dos resultados obtidos.
. A Amazônia legal. Representa cerca de 50% do território nacional e é também a maior floresta virgem do planeta. O número de cientistas brasileiros na área de geociências e meio ambiente é pequeno (veja tabela).
É difícil prever uma política nacional adequada de utilização e preservação dos recursos naturais da Amazônia sem um conhecimento adequado das características geológicas e ambientais da região.
Seria, portanto, desejável que as nossas agências de fomento intensificassem os esforços para a formação de novos cientistas nestas áreas do conhecimento.
Finalmente gostaria de elogiar o papel que vem desempenhando a Folha de S. Paulo na área de ciência e tecnologia no país. Diferente da maioria dos outros periódicos, que se limitam a descrever as novas descobertas no cenário internacional, a Folha tem se transformado em um fórum de debates das questões relevantes da ciência e dos cientistas brasileiros.
Cabe a nós concordar e discordar com argumentos necessários ao exercício da democracia, esquecida até há poucos anos.

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