São Paulo, domingo, 11 de junho de 1995
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Livro traça o percurso de um gênio suave e revolucionário

DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

Sigmund Freud, o pai da psicanálise, que era bem menos determinista do que se pensa, não recomendava aplicar seus conceitos à psicologia de gênios. Felizmente, Desmond e Moore, como bons britânicos, evitaram isso em sua excelente biografia de Darwin.
Nas mãos de um francês, o Darwin que é formado por tal mosaico de informações seria um paranóico em muda revolta contra as imposições de sua sociedade, transferindo a frustração ao colecionamento de formas de vida primitivas e minúsculas, por trás das quais via complôs grandiosos do destino.
Desmond e Moore não psicanalisam Darwin. Contam sua vida pessoal e a encordoam no pano de fundo histórico, mas mantêm entre os dois planos uma saudável distinção. Valem-se de associações -às vezes excessivamente arbitrárias (como achar que a Guerra da Criméia favoreceu o entendimento da evolução como uma luta)- entre desenvolvimentos teóricos e ocorrências históricas, mas resguardam a individualidade.
Como resultado, o indivíduo Darwin surge como nunca antes. A biografia tem uma vitalidade no texto e uma honestidade na intenção que criam um retrato muito íntimo, embora objetivo. Isto é, faz de Darwin nosso vizinho -humano, razoavelmente humano.
Os autores creditam o sucesso do livro ao fato de que há sobre Darwin mais informações do que quase sobre qualquer outro gênio. Mesmo porque ele anotava, descrevia e registrava tudo que pudesse, em cadernos e cartas, com a obsessão que parece ser um dos traços distintivos dos gênios.
Mas não é só isso. Outra qualidade do livro é fugir à reportagem direta que caracteriza as biografias da moda. Sai com frequência da descrição para entrar na análise e na analogia. Claro: como entender a evolução intelectual de Darwin só com empilhamento de fatos?
Por falar em evolução, a biografia pode ser descrita com a mesma imagem que Darwin usava para descrever a seleção natural: um arbusto. Numa narrativa ramificada, vai mostrando a adaptação de Darwin ao acaso e ao habitat.
Ambicioso e corajoso, como todo talento jovem e dono de uma escrita superior, Darwin tinha um toque do artista nele.
O clichê se aplica. Em sua viagem no Beagle pela América do Sul, como mostra a biografia, é a sensibilidade que parece conduzir em grande parte suas reflexões, na forma de analogias e induções, cristalizando sua percepção da história natural como um curso multiforme, esquivo e casual -ou seja, em certa clave romântica.
Mas esse momento, esses cinco anos da vida de Darwin que mudaram a história da humanidade, sugere uma personalidade que não é a dele. Ele não era corajoso, romântico, empreendedor. ``Pessoalmente", era covarde, seriíssimo e recluso. Corajoso, romântico e empreendedor era o seu gênio. Mas o gênio não é ele?
O livro é fiel a esse paradoxo. Gênio não cabe em definições convencionais. Darwin nada tinha a ver com Van Gogh, além da barba. Só se encaixa no estereótipo do gênio como um animal atormentado quando se pensa em sua saúde precária, que a biografia atribui, parcialmente, a seus temores de lançar na sociedade uma teoria que mais parecia um crime.
Pode ser. Esse homem por 20 anos hesitou em revolucionar o conhecimento humano. A sociedade em que vivia era o produto de uma visão de mundo diametralmente oposta. Isso certamente significava uma perturbação extrema. Mas não foi a saúde precária ou a perturbação extrema que o levaram a descobrir o que descobriu.
Nas 700 páginas do livro, que jamais cansam, o Darwin que se estabelece é um homem suave, destituído de inveja, capaz de passar cinco anos estudando um único assunto, dotado de dúvidas comuns (sobre casamento, reforma social, existência de Deus), vivendo tragédias (como a perda da filha), mas que não levava nada a extremos, exceto sua paixão pela dinâmica da natureza.
Pode parecer que a teoria da evolução quase se impôs a ele, à maneira de uma mutação genética, mas o livro também deixa clara a operosidade intelectual de Darwin, ainda que não resuma suas idéias (às quais há inúmeros livros dedicados, como ``Darwin e os Enigmas da Vida", de Gould).
Outro defeito é o tratamento de Huxley como um biólogo quase diletante, interessado apenas em usar o darwinismo para se afirmar socialmente. No livro, é como se Huxley quisesse, por conta própria, ter dado às idéias de Darwin um caráter anticristão.
Mas elas de fato solapavam séculos de cultura católica; e o gênio de Huxley, com qualidades de que Darwin era privado (em particular, o conhecimento aprofundado de diversas disciplinas -ele sabia muito de quase tudo), era colocar a necessária veemência nessa visão historicamente correta.
Chocado com seu próprio materialismo, Darwin se fechou em seu gabinete. Se não fosse Wallace, Huxley e Haeckel, talvez não tivesse escrito ``A Origem das Espécies" -mas não teria parado de lutar por compreendê-la. A genialidade assusta até os gênios.

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