São Paulo, domingo, 11 de junho de 1995
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'Era religioso e materialista'

DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

James Moore é autor de um livro chamado ``Controvérsias Pós-Darwinianas". Ou seja: seu ponto de vista é o intelectual. Como era esse homem que mudou a história da ciência com suas obsessões e intuições? -eis o que Moore tentou responder na parte da biografia que escreveu.
PhD na Universidade de Manchester, Moore é professor de história da ciência na Open University. A seguir, fala sobre a religião em Darwin, sua saúde precária e a herança de suas idéias.

Folha - O sr. cuidou da parte mais teórica do livro. Como fez para que ela não atrapalhasse o ritmo narrativo da biografia?
James Moore - Na verdade Adrian (Desmond) cuidou mais do início da vida de Darwin, eu comecei pelo final. Mas colaboramos mutuamente a cada capítulo. Nos completamos. Adrian cuidou do contexto social e da história científica e eu, da visão religiosa e da visão de mundo de Darwin.
Isso permitiu uma visão variada, detalhista, de Darwin, permitiu colocá-lo no mundo vitoriano. Eu diria que Desmond é que trouxe Darwin à vida no livro, porque mostrou as circunstâncias que o influenciavam e sobretudo as que o afligiam. E tentamos escrever o livro de maneira ágil.
Folha - Qual a diferença entre o Darwin que o sr. tinha em mente há 20 anos, quando começou a pesquisar sua época, e o que está no livro?
Moore - Primeiro, é preciso dizer que o livro não seria como é se tivesse sido escrito há dez anos. Em segundo lugar, o Darwin que eu imaginava há 20 anos era um homem que vivia exclusivamente no mundo das idéias, preocupado com teorias científicas, com a cabeça nas nuvens.
O Darwin que descobri é um homem de seu tempo. Entendi que suas idéias eram parte do mundo social, político e religioso em que viveu. Suas idéias sobre ciência tinham muito a ver com suas idéias sobre a sociedade, sobre a moral.
Vi, em suma, que ele não foi só um intelectual, mas também um homem tímido, que se adoentava frequentemente, que investia seu dinheiro em ferrovias, que era extraordinariamente curioso e inteligente. E que investigava a história natural não por dinheiro, por amor ou por ideologia, mas porque sentia que precisava investigá-la.
Folha - Em que medida a religião foi responsável pelos 20 anos que Darwin permaneceu em silêncio, com medo de divulgar sua teoria da evolução?
Moore - Ela foi importante, muito importante, mas temos que entender que religião, na época de Darwin, não era uma coisa privada, mas uma responsabilidade pública, especialmente para um homem da classe social de Darwin.
Darwin foi criado como anglicano, estudou em universidades anglicanas, pretendia ser um pároco anglicano. Sua determinação de coletar e estudar tem algo de um pároco naturalista anglicano.
Na sua época era possível ser um cientista e ser um padre. Melhor ainda, na sua época não se falava em ``cientista", uma palavra que só começou a ser usada quando Darwin já estava velho.
Até então, os homens que conduziam a ciência não eram mais que amadores ricos. Nesse mundo, confessar que se acreditava em ``evolução" era confessar um crime; evolução era má religião, e Darwin não era mau. Tudo que queria ser era um bom homem. Assim, tinha de ficar quieto.
Folha - Ser evolucionista era mais um crime ou um pecado?
Moore - É difícil dizer, porque Darwin nunca falou nada sobre o porquê de ter ficado 20 anos em silêncio. Mas era mais uma questão social, creio.
Considere que, durante esses 20 anos, ele vivia recluso, com sua mulher, e ela tinha muitos receios das idéias evolucionistas do marido. Achava que isso faria dele um homem menos respeitável.
Também precisamos deixar claro que ele não ``adiou" a divulgação de sua teoria por 20 anos; apenas procurou outras coisas para fazer, para se manter ocupado. Digamos que ele ``procrastinou". Queria reforçar os argumentos, as pesquisas, embora não precisasse fazer isso, do ponto de vista científico -apenas do social.
Folha - Nesse período ele ficava constantemente doente, vomitava muito etc. Ele estava ``somatizando", seus temores psicológicos estavam se manifestando em problemas físicos?
Moore - Claro. Sua demora em publicar a teoria tinha a ver com seus temores, seus temores tinham a ver com suas doenças e mal-estares. Ele nunca estava saudável. Precisava de cuidados. Não queria sair de seu mundo, de sua casa; era obcecado com seu trabalho. Não se sentia bem com estranhos.
Seus temores e doenças estavam sem dúvida ligados à sua teoria, que ele acreditava verdadeira, bem fundada, mas não conseguia falar dela a não ser para um número muito pequeno de pessoas.
Basta ver que, nos últimos dez anos de vida, quando ele parou de fazer trabalhos teóricos e se dedicou apenas a pesquisas de botânica, sua saúde melhorou notavelmente. Entre os 30 e 60 anos de idade, ele viveu doente.
Folha - Então o sr. diria que a própria vida dele é uma prova de que corpo e alma são bastante interrelacionados, de que instintos animais e princípios morais estão conectados?
Moore - (risos) Bem observado. Darwin acreditava nisso, na unidade psicossomática. Era um homem religioso e materialista ao mesmo tempo. E sua mente afligia seu estômago.
As pessoas ainda hoje se comportam como se não houvesse essa relação tão entrelaçada. Muitos pontos de Darwin não foram entendidos ainda. Como se ciúme, por exemplo, não fosse um dado instintivo, além de cultural.
Folha - O pensador Karl Popper achava que o darwinismo não é uma teoria científica. Há, hoje, uma reavaliação da teoria evolutiva de Lamarck, que afirma que existem, sim, algumas mutações naturais decorrentes de necessidades funcionais específicas. O biólogo Stephen Jay Gould tentou preencher alguns ``buracos" na teoria da evolução, em especial o excessivo gradualismo da visão de Darwin. Qual a opinião do sr. sobre a pertinência da teoria hoje?
Moore - Devo responder como historiador, não como biólogo. Não acredito que nenhuma teoria científica tem a última palavra. Isso não quer dizer que a teoria de Darwin necessariamente será refutada um dia, mas há vários ângulos novos, sempre haverá.
Há teorias de evolução alternativas, mas a ciência aprende com todas as teorias, e com a de Darwin ela aprendeu mais do que com qualquer outra. E o próprio Darwin vivia corrigindo suas opiniões e acompanhava as novas gerações.

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