São Paulo, domingo, 11 de junho de 1995
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Tratado do Parlamento

A sabedoria sertaneja dizia que a política era uma coisa "para os ricos bestas e para os pobres sabidos"
GERARDO MELLO MOURÃO
Todo mundo sabe que o Parlamento e os parlamentares brasileiros amargam a maledicência e quase o repúdio da opinião pública. Talvez seja uma ficha de consolação lembrar que o fenômeno ocorre no mundo inteiro e que no Brasil é tão antigo quanto a própria instituição.
Já o austero Armitage, excelente historiador inglês de nossas balbuciantes instituições, proferia, sobre a primeira Assembléia Constituinte, um julgamento que era endossado também por Evaristo da Veiga: ``Havia entre todos mui poucos indivíduos, se é que os havia, acima da mediocridade".
E isso se dizia de um Congresso que tinha entre seus membros o patriarca da Independência, José Bonifácio, e o patriarca da economia, o Visconde de Cairu. E ainda homens do peso do marquês de Olinda, de Arouche, de Caravelas, de Vergueiro, de Carneiro da Cunha, de Sapucaí, de filósofos como Carneiro de Campos e Ferreira França, de eclesiásticos como o bispo José Caetano e Belchior Pinheiro, testemunha do grito do Ipiranga, e mais de uma dúzia de homens públicos que aprendemos a considerar como autênticos pais da pátria.
Hoje, não se sabe se mesmo com a lanterna de Diógenes será possível encontrar paralelos nas catacumbas do sinistro palácio da Câmara e do Senado, sem ar e sem luz naturais, na abominável redoma de cimento do Planalto Central. Mas isso é outra história.
É e não é. Pois o sábio Francisco Campos, em suas memoráveis aulas do doutorado da Faculdade de Direito na Universidade do Brasil, advertia que a mudança da capital para o deserto goiano seria um ato de estupidez histórica e um crime contra a estrutura política e cultural do país. Não deu outra.
Houve um processo de desintegração nacional. O que deveria ser o centro do poder passou a ser um gueto de falso luxo. As melhores vocações da vida pública recusaram-se ao sacrifício de trocar a vida dos centros metropolitanos tradicionais pelo degredo dourado de Brasília. Até porque a troca truncava a viga mestra da construção de quadros qualificados para a vida pública.
A sabedoria sertaneja dizia, diante do apetite eleitoral dos candidatos à Câmara e ao Senado, que a política era uma coisa ``para os ricos bestas e para os pobres sabidos". Os ricos bestas procuravam melhorar a biografia e os pobres sabidos achavam um meio de melhorar a contabilidade.
Não se deve fazer uma generalização ao pé da letra. Mas é certo que só os melhores resistiram ao doce suborno das inconfessáveis regalias de Brasília. Por uma questão de pudor, é melhor não as relacionar aqui.
De qualquer modo, vale a pena lembrar que a grande aldeia deslumbrada, com suas mansões cafonas e suburbanas por dentro e por fora, típicas do mau gosto de um ``nouveau-richisme" e de um bovarismo maravilhado consigo mesmo, não é propriamente a morada ideal de pessoas voltadas para a austeridade da coisa pública. Mas isto também é outra história.
Pois, para remissão de nossos pecados políticos, sempre existe uma coisa que os teólogos chamam de ``graça de estado". Ensinam os doutores da Igreja que qualquer pessoa, investida em funções e deveres superiores ao que delas se esperava, acaba contaminada pela consciência e pela grandeza da missão.
Isto é o que Tolstoi chamaria de ``efeito Kutuzov" -o gênio tático e estratégico miraculosamente revelado por um general até então obscuro, quando lhe coube a responsabilidade de bater-se com Napoleão na campanha da Rússia.
Talvez para uma boa avaliação de nossos senadores e deputados, os bons e os menos bons que nos representam, o mais correto seria fazer um pequeno tratado do Congresso. E a palavra tratado não vai aqui com o sentido solene dos ensaios doutorais, mas como um exercício semelhante àqueles textos cordiais dos ``Tratados de la Habana" do poeta cubano Lezama Lima. ``Tratados", no sentido de uma conversa íntima e aberta que tratava de todos os aspectos humanos, da forma e do ``Antlicht" de sua doce e amarga cidade de Havana.
Afinal, ruim com o Congresso, pior sem ele. E se lá não encontramos mais aqueles varões de Plutarco do Império, nem os fundadores da República, nem mesmo os de tempos menos remotos, como um Otávio Mangabeira, um Nereu Ramos, um Carlos Lacerda, nem presenças significativas da história partidária do país, como um Luís Carlos Prestes ou um Plínio Salgado, seria incorreto negar que algumas ``performances" promissoras despontam no Congresso que está aí.
E isto à esquerda e à direita -para os que ainda acreditam nesta velha superstição de uma divisão de campo, como nas equipes de futebol, para o exercício partidário.
Seria preciso examinar nomes, à moda de Machado de Assis, em suas crônicas da vida parlamentar. Até para descobrir que um dos sinais positivos da Câmara e do Senado de nossos dias é exatamente a esponja que os melhores entre os congressistas estão passando neste velho ``nonsense" ideológico, que espartilhava a vida pública na linha imaginária e tola de uma ultrapassada idéia do século passado.
As pessoas que ainda falam de esquerda e direita parecem ignorar que estamos no final do século 20, às portas do terceiro milênio, em que os sociólogos e os economistas do velho marxismo e do velho capitalismo estão mais velhos que a sé de Braga, os sapatos ``bataclan" e os chapéus de penico das melindrosas de 1900.

GERARDO MELLO MOURÃO, 75, poeta e escritor, é membro da Academia Brasileira de Filosofia e do Conselho Nacional de Política Cultural do Ministério da Cultura. Foi professor de história e cultura da América na Universidade Católica do Chile (1964-67) e correspondente da Folha em Pequim (China) de 1980 a 82.

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