São Paulo, domingo, 11 de junho de 1995
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O tempero certo da cultura

EDEMAR CID FERREIRA

Dos documentos que, historicamente, regulamentaram as relações entre o Estado e a produção cultural no Brasil, certamente o mais liberalizante foi a lei Sarney. Mais do que liberalizante, era o texto mais adequado para os dias em que vivemos, nos quais cada vez menos se aceita a presença do Estado interventor na economia e mais se apregoa o primado da liberdade de escolha, seja no campo econômico, seja, principalmente, no político e, por extensão, na atividade criativa.
A partir daí, a lei Rouanet representou um retrocesso. Inclusive sua primeira regulamentação. Fernando Collor, ao pretender riscar o nome de seu antecessor e adversário, de um documento desse valor, terminou por negar os próprios conceitos liberais de outras atitudes de sua gestão. Pois seu documento legal é restritivo e burocratizante, principalmente por eliminar a figura do promotor cultural e por engessar os percentuais dos incentivos.
Trata-se de uma miopia, agora em parte corrigida pelo decreto nº 1.494, de 17 de maio passado. Ao regulamentar a lei, o atual governo tenta salvá-la, corrigindo sua miopia com lentes de longo alcance, recuperando, inclusive, a figura do promotor cultural.
Parte importante da falta de funcionalidade do texto de Collor se devia a essa importante lacuna. Retirar de cena o intermediário entre o artista criador e a autoridade financiadora é um gesto insensato, semelhante à tentativa de eliminar o estágio do comércio na circulação de mercadorias, que data da mais remota antiguidade.
Iguais são as dificuldades para conseguir patrocínio para a produção dos bens artísticos e, também, para levá-los ao consumo do público, finalidade precípua de sua existência. O intermediário da produção artística é responsável por uma ligação entre artista e autoridade, entre criador e consumidor equivalente à desempenhada por jogadores de meio-campo no futebol: conduzir, de forma consciente e organizada, a bola rebatida pelo defensor aos pés do atacante.
Evidentemente, um decreto do Poder Executivo, regulamentando lei autônoma e soberanamente discutida, votada e aprovada pelo Legislativo, não pode prevalecer sobre seu próprio motivo de existência. Assim sendo, alguns pontos obscuros da lei Rouanet permanecem, mesmo depois do decreto, sem transparência, da mesma forma que os óculos corrigem a miopia, mas não a curam.
Caso, por exemplo, dos percentuais permitidos para abatimento no Imposto de Renda de pessoas físicas e jurídicas, que são muito modestos. As pessoas jurídicas podem abater 30% para projetos de patrocínio e 40% para doações. Mesmo assim, felizmente, foi possível corrigir um equívoco nessa área, com o aumento da base do desconto sobre o total do imposto devido pela pessoa jurídica, que passou dos escassos 2% vigentes para 5%, um reajuste considerável de 150%, que vale ser aplaudido.
Se é o caso de aplaudir, é também ocasião para sugerir, de forma construtiva, modificações capazes de melhorar a possibilidade de o decreto-óculos reduzir ainda mais a miopia da lei original. É possível aumentar recursos destinados à produção cultural, sem grandes complicações.
Todos os anos, o presidente da República publica decreto com o valor absoluto da renúncia fiscal para projetos culturais. Tal valor tem sido permanentemente mantido em padrões muito modestos, menos de 1% do Orçamento. Mesmo escasso, não tem sido usado em sua plenitude, seja por culpa dos obstáculos burocratizantes da lei Rouanet, seja pelo desconhecimento geral de seus mecanismos, provocado pela ausência dos promotores culturais.
Atualmente, a renúncia fiscal não aplicada em projetos de arte e cultura volta, simplesmente, para os cofres do Tesouro. Ora, são recursos com os quais a União não conta, pois já estão previstos como renúncia fiscal. Por que, então, não destiná-los ao Fundo Nacional de Cultura, para absorver suas sobras, permitindo o mínimo de flexibilidade para o Ministério da Cultura arcar com as despesas da manutenção de bibliotecas, museus e outros patrimônios da arte e da cultura nacionais?
O mesmo Fundo pode ser usado, ainda, para corrigir outra lacuna da lei Rouanet. Os artistas individuais, sem a proteção de grandes instituições, simplesmente não têm acesso algum a patrocínios oficiais ou particulares incentivados pela lei em questão.
No entanto, a obra de tais artistas, normalmente comprometida com a vanguarda e, portanto, com os necessários avanços na própria linguagem estética, é fundamental. Para dar a tais artistas condições pelo menos semelhantes às concedidas às grandes instituições, é possível utilizar os recursos do Fundo criado a partir das sobras da renúncia fiscal para lhes financiar bolsas de estudo, viagens ao exterior, exposições e desenvolvimento de projetos.
Não se trata de proposta estranha, que requeira a reunião de comissões específicas para elaborar mecanismos. Eles já existem e funcionam bem e plenamente em países desenvolvidos. O ``National Endowment of the Arts", do governo americano, por exemplo, prevê um fundo criado especificamente para patrocinar instituições e entidades sem fins lucrativos e artistas com notória excelência na produção de bens estéticos ou culturais que não tenham condições de competição no mercado consumidor.

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