São Paulo, domingo, 11 de junho de 1995
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nus em terra de gringo

MARILENE FELINTO

Começo de verão na Europa, continente meio morto, países de alma pesada. O sol atravessa as nuvens, esquenta os ares, tinge de azul o velho céu europeu.
Para o povo de pele branca, começa um período de ansiedade pela vida ao ar livre. Correm para os parques, povoam as ruas, não conseguem ficar em lugares fechados, casas, ambientes de trabalho.
Nos parques de Berlim e outras cidades alemãs, as pessoas tomam banho de sol inteiramente nuas.
Para muito brasileiro, a cena dos nus no parque será um espetáculo. São parques comuns (e não de nudismo), à beira de avenidas, onde as pessoas vão chegando a pé ou de bicicleta e tirando a roupa como se fosse a coisa mais natural.
Não se trata de um ambiente de praia, ainda que alguns parques sejam à beira de lagos e rios, e ainda que aventureiros nadem nas águas sempre geladas.
De repente forma-se o cenário: homens, mulheres, crianças, velhos e jovens, todos nus. Todo tipo de corpo, de peito e de pinto exposto aos raios do sol desejado.
Estendem suas esteiras e se deitam, ou se sentam, conversando ou não, comportados como se estivessem assistindo a um concerto de música clássica, a uma palestra -só que nus.
Quantas vezes não tive que segurar a gargalhada, imaginando a cena no Brasil, no Ibirapuera paulista ou no Jardim Botânico carioca. Calculei os disparates ditos, a sacanagem coletiva, a bolinação, a suruba, o carnaval.
Por todo canto eu sentia o cheiro de rabujo dos inevitáveis cachorros europeus, que acompanham seus donos a qualquer lugar. De todo canto, cada palavra em língua alemã vinha soar como uma chicotada em meus ouvidos constrangidos.
De início me perguntei se esse costume alemão seria o máximo da descontração, avançado liberalismo comportamental. Se seria eu, a brasileira, a conservadora moralista.
Engano. Não havia segundas intenções naquele parque. Não havia erotismo. As pessoas pareciam nuas ali como crianças umas diante das outras (ou pelo menos era esse o esforço que se fazia).
A nudez brasileira é erótica por natureza. Nosso erotismo tem um quê de perversidade. Nossas praias não precisam de nudez para ganhar em safadeza. E é claro que a fantasia sexual se estimula muito mais com o que se insinua (o fio dental rasgando a bunda, a tanga avolumando o pênis), do que com aquilo que se expõe publicamente em todos os seus defeitos de carne -pelancas, gorduras, manchas e cicatrizes.
Impossível me imaginar entabulando uma conversa com um daqueles desconhecidos nus sem olhar para as partes íntimas dele.
Ali, com exceção dos homens gays, que flertavam mais acintosamente, ninguém olhava para ninguém, sob pena de ser acusado de molestamento sexual, calculei.
Impossível achar normal o hábito -da ansiedade pelo sol ao ato de despir-se em público. Vida estranha, gente estranha. A diferença me causou preguiça. Me recusei a compreender as gentes e seus costumes.
Me senti confortável no meu vestidinho azul xadrez. Me lembrei de uma noite quente de mormaço nordestino, gente escura cantando hinos numa igreja protestante, pedindo "Chuvas de Graças ao "Consolador, chuvas constantes, que fizessem a terra seca dar frutos a quem tinha fome.

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