São Paulo, segunda-feira, 12 de junho de 1995
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`Os médicos estão até os cotovelos em sangue'

DA ``NEW YORKER"

Uma das médicas sul-africanas da equipe (que estava no Zaire) é uma figura importantíssima na história dos surtos de doenças infecto-contagiosas, chamada Margaretha Isaacson. Ela é uma mulher com ares de avó, que dois anos atrás aposentou-se do Instituto Sul-Africano de Pesquisas Médicas e foi viver numa comunidade de aposentados na periferia de Johannesburgo. Na semana passada ela deixou um recado em sua secretária eletrônica dizendo ``A dra. Isaacson não está disponível". Abandonou sua aposentadoria e voou para o Zaire para juntar-se à equipe de médicos. Ela está em Kikwit neste momento. Durante o surto de Ébola no Zaire em 1976, Margaretha Isaacson certa vez tirou sua máscara de proteção biológica porque a atrapalhava quando estava tratando de um doente de Ébola.
O caso de Ébola na Costa do Marfim aconteceu seis meses atrás, em novembro de 1994, quando uma cientista suíça estudava um bando de chimpanzés no Parque Nacional de Tai. A floresta Tai é uma das últimas florestas equatoriais intocadas na África Ocidental. O bando de chimpanzés foi infectado por um vírus, e muitos deles morreram. A cientista, muito preocupada com seus chimpanzés, dissecou um dos animais mortos para tentar descobrir a causa da morte. Depois de entrar em contato com o sangue do chimpanzé morto, ela passou a apresentar os sintomas do vírus Ébola.
Gravemente doente, ela foi levada à Suíça num avião comercial para receber tratamento médico. Em outras palavras, ela ingressou na Internet biológica. Os médicos que a trataram, na Suíça, não perceberam que ela tinha Ébola. Eles achavam que a doença era dengue, que é provocada por um vírus transmitido por mosquitos. Apesar disso a cientista sobreviveu, e não foram reportadas quaisquer outras contaminações. O vírus foi identificado como sendo uma nova linhagem de Ébola, e também confirmou que os chimpanzés da floresta Tai haviam sido contaminados pela mesma linhagem. Ela é conhecida como Ébola Costa do Marfim, e vive na floresta Tai.
Houve outro caso curioso. Em janeiro de 1991, um estudante de medicina de 21 anos, sueco, voltou à Suécia depois de fazer uma viagem pelo Quênia. Ele havia passado cerca de um mês na cidade de Kitale, situada a 40 km da caverna Kitum, local que talvez seja o esconderijo de um primo do Ébola, o vírus Marburg. O estudante não foi à caverna durante o período que passou perto do monte Elgon. Cinco dias depois de retornar à Suécia ele ficou doente e foi levado ao Hospital Universitário de Linkoping. Seu sangue estava coagulando no interior do corpo, ele tinha febre alta e a seguir, começou a sangrar por todos os orifícios do corpo.
Nesse tipo de doença o paciente às vezes atinge um ponto de crise, a partir do qual pode entrar num choque terminal e irreversível. É o chamado ``crash". O estudante sueco entrou em crise, parecia estar entrando em crash, e uma equipe médica do hospital Linkoping ficou a seu lado, tentando por todos os meios salvar sua vida. Uma enfermeira estava debruçada sobre seu rosto quando o estudante de repente vomitou um jato de sangue que entrou nos olhos da enfermeira. Dois outros membros da equipe se picaram acidentalmente com agulhas. Possivelmente estivessem assustados, mas o mais provável é que estivessem trabalhando muito rápido e as agulhas escaparam. Esses acidentes com sangue e agulhas não aconteceram porque a equipe médica do Linkoping é incompetente. Eram pessoas altamente treinadas. Os acidentes aconteceram porque elas correram para salvar a vida do paciente, deixando sua própria segurança em segundo plano -e é isso que os melhores médicos costumam fazer com um paciente em crise.
O rapaz sobreviveu. Uma pesquisa revelou que 55 integrantes da equipe médica do hospital Linkoping haviam sido expostos ao sangue e aos fluidos corporais do paciente. Todos corriam o risco de contaminação. Quase inacreditavelmente, nenhum deles adoeceu, nem mesmo a enfermeira que recebera o jorro de sangue nos olhos. Os pesquisadores não conseguiram identificar o agente infeccioso. O caso foi qualificado como ``suspeito vírus Marburg".
Sabendo de tudo isto, comecei a me indagar o que está realmente acontecendo com os médicos locais, os enfermeiros e as freiras que estão em Kikwit, lutando para trabalhar em clínicas e hospitais infectos e decadentes, virtualmente abandonados pelas autoridades do governo, no momento tão quentes quanto o inferno, num sentido biológico, e não contando sequer com os suprimentos médicos mais básicos como luvas de borracha, aventais impermeáveis ou agulhas limpas. Para o pessoal médico em Kikwit a situação é um pesadelo vivo -pelo menos para os que ainda estão vivos. Os médicos e enfermeiros estão literalmente enfiados até os cotovelos em sangue, vômito preto e cocô da cor de sopa de beterrabas.
Buscando obter uma perspectiva da situação, falei ao telefone com um médico chamado Bill Close, que viveu no Zaire por 16 anos e estava lá durante o apavorante surto de Ébola em 1976, e ajudou a organizar o esforço para interromper a progressão do Ébola na época. O Dr. Close (que por acaso é pai da atriz Glenn Close) era o médico-chefe do Exército congolês. Ele reconstruiu e dirigiu o Hospital Geral Mama Yemo, na capital, que tem dois mil leitos. Ele hoje funciona como ligação entre o governo zairense e o Centro de Controle de Doenças, dos EUA.
``É um imenso vírus hemorrágico letal africano", disse o dr. Close. ``Estamos todos sentindo que o Ébola sai de seu esconderijo de vez em quando, quando alguma coisa altera o equilíbrio muito delicado dos ecossistemas. Mas se existem lições a ser aprendidas ali, são as lições humanas. É uma história de pessoas que estão cumprindo seu dever. É sobre médicos fazendo o que precisa ser feito, agora mesmo, sem heroísmos. Alguma vez você já ficou absolutamente petrificado de medo? Medo de verdade? Você já ficou possuído de terror nu e cru, sem ter qualquer esperança de controlar o que vai acontecer com você? Quando a sorte está lançada, o medo vai embora e você faz o que tem que fazer -você vai ao trabalho. É isso que está acontecendo com o pessoal médico no Zaire agora. Há coisas acontecendo ali que..." Ele hesitou. ``Coisas humanas magníficas.... Como posso explicar? No Zaire, em 1976, houve uma freira que morreu de Ébola. Um padre estava ali para lhe dar a extrema unção no momento de sua morte. Ela tinha febre altíssima, o suor escorria por seu rosto. E o sangue escorria de seus olhos. Lágrimas sangrentas escorriam por suas faces. O padre tirou o lenço do bolso e enxugou o suor e o sangue do rosto dela. Depois, sem pensar, enxugou o próprio rosto com o lenço ensanguentado. Dez dias mais tarde ele estava morto. Um dos médicos em 1976 -ele era belga- fez um parto no meio daquilo tudo. Havia pessoas morrendo de Ébola por toda parte no hospital, e havia essa mulher em trabalho de parto. Era a paciente dele. O bebê estava preso -era grande demais para passar pelo canal de parto. Então o médico realizou o procedimento Zarat na mulher. É uma maneira simples e grosseira, mas bastante efetiva, de alargar o canal para permitir a passagem do bebê. Você corta a sínfise pubiana com uma faca".
``O que é sínfise pubiana?" perguntei.
``É a parte frontal da pelve. Os ossos pélvicos. Você os separa. Você corta a cartilagem com um bisturi. Os ossos fazem `pop' e a pelve se abre, e você puxa o bebê para fora. O hospital não tinha mais anestesia. Então o médico fez a sínfise sem anestesiar a mulher".
``Meu Deus".
``Ele tinha um sedativo, e ele deu o sedativo a ela para acalmá-la, mas ela estava consciente. O bebê estava com parada respiratória e estava encharcado com o sangue da mãe. O médico segurou o bebê e colocou sua boca junto à boca do bebê, e o ressuscitou com respiração boca-a-boca. O bebê começou a respirar. O médico se afastou, e seu rosto e boca estavam sujos de sangue. Havia uma enfermeira ao seu lado e, quando ela viu seu rosto, ela disse: `Doutor, você percebeu o que acabou de fazer'?
`` `Eu percebi', ele disse".
Tradução de Clara Allain

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