São Paulo, terça-feira, 13 de junho de 1995
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E os cargos de confiança?

RENATO JANINE RIBEIRO

Entre os consensos automáticos que o discurso dos economistas e empresários, por um lado, e a simplicidade da imprensa, por outro, têm montado, está o ataque à estabilidade do funcionalismo público. Como se conhece a ineficiência do Estado brasileiro, até parece ser essa a saída para as mazelas do setor. Mas as coisas não são tão simples, e paradoxalmente a mera supressão da estabilidade pode agravar o impacto da política sobre o serviço público.
O grande erro, quando se discute a estabilidade, está em vê-la como um direito trabalhista. Esse erro, aliás, é comum aos defensores e aos críticos da estabilidade, aos sindicatos e ao governo. Ora, ela pode até ser um direito trabalhista, mas só derivadamente. Seu sentido correto é o de uma garantia de permanência e seriedade do Estado, contra os humores dos partidos que se alternem no governo.
A idéia essencial é que o funcionário é do Estado, não do governo. Sem dúvida, na democracia o governante tem uma legitimidade conferida em eleições, mas, sendo o Estado de Direito, seus poderes são limitados. Por isso deve haver um corpo funcional de carreira e qualidade para garantir uma administração objetiva e impessoal. E isso significa que o governante não deve ter um poder ilimitado de nomear e demitir.
Não sendo assim, corremos o risco de substituir um certo número de servidores ineficazes por uma unanimidade de funcionários apontados por compadrismo político. Ou esqueceremos que os partidos das nomeações eleitoreiras estão nas coligações que mandam na União, no Estado, no município? Acabar simplesmente com a estabilidade dos 600 mil cargos que haveria na União federal, o que significaria senão entregar 600 mil empregos, a cada quatro anos, à sanha dos políticos?
Vejamos outros modelos. Na Itália, a cada troca de governo os cargos de confiança em que se mexe orçam pela centena. Na França, saem apenas os ministros (revista ``Veja", 8 de março). Nos ministérios britânicos, os próprios chefes de departamentos permanecem em seu lugar, governo após governo.
Uma burocracia sólida, respeitada e eficaz garante a continuidade da ação governamental. Obviamente, ela segue diretrizes políticas, decididas pelo povo em eleições livres e encaminhadas pelo governo. Mas ela assegura a permanência do Estado.
Por isso, a questão não estará mal colocada, entre nós, e o problema não deveria ser outro: em vez de apenas acabar com a estabilidade, instituir um serviço público sério, de carreira, reduzindo brutalmente o número de cargos de confiança (hoje, de 5.000 a 10 mil só na União federal)?
Porque, da campanha em curso contra a estabilidade, pode resultar um efeito indesejado pela sociedade: o de aumentar as nomeações políticas. Hoje, dificilmente um governante poderia imitar aqueles prefeitos que nomeavam, numa só edição do ``Diário Oficial", milhares de funcionários. A máquina não comporta inchaços adicionais.
O único meio de atender hoje a interesses eleitoreiros consiste em demitir -para nomear. Mas é isso o que desejamos do Estado? Não estaremos, com o fim sumário da estabilidade, favorecendo um jogo pelo qual novos cabos eleitorais ocuparão o Estado?
Por isso, qualquer reforma da estabilidade deve partir de alguns princípios. O primeiro é que não se trata primariamente de um direito trabalhista, que teria por titular cada servidor (o que rebaixa a discussão ao plano corporativista, dirão alguns, ou privatizante, direi eu, porque converte uma regra pública em benefício privado de cada funcionário) -e sim de um princípio essencial a distinguir o Estado e o governo e, portanto, de uma garantia do estado de Direito.
Segundo princípio: não é legítima a estabilidade sem concurso, como a que a Constituição de 1988 deu a todo aquele que exercia um cargo havia cinco anos. Ela pode e deve ser revista. Mas isso não quer dizer que não deva haver estabilidade alguma.
O ideal é instituir um sistema ágil e sério de avaliação. O chefe não poderia demitir e nomear sem o aval de uma comissão independente, que avaliaria as qualidades do possível demitido. Evidentemente, tem de acabar o Estado paternalista, que prodiga ao funcionário embriagado, por exemplo, um desvelo que não mostra ao cidadão necessitado de atendimento. Mas vamos com cuidado, para não substituirmos uma máquina politiqueira por outra.
E terceiro ponto: cumpre reavaliar a questão dos cargos de confiança. Um excelente critério para medir se um governo é sério consiste em ver se ele os está reduzindo drasticamente. Milhares de cargos de confiança em cada nível do poder: esse é o pior defeito de nossa politicagem. Não só tais cargos não devem se multiplicar (o que pode ocorrer com o fim singelo da estabilidade), como precisam diminuir.
Isso exige repensar a função pública, torná-la séria. O que requer soluções globais, ações de governo, cobrança da sociedade. E isso, enfim, exige que paremos de acreditar em soluções facílimas, mágicas, como uma emenda constitucional que resolveria tudo.

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