São Paulo, quarta-feira, 14 de junho de 1995
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Inédito revela fantasmas de Cortázar

JOSÉ GERALDO COUTO
DA REPORTAGEM LOCAL

Onze anos depois de sua morte, o escritor argentino Julio Cortázar (1914-84) ainda não terminou de dizer o que tinha a dizer. A prova disso é ``Diario de Andrés Fava", que acaba de ser publicado no México e sai este mês na Argentina.
Escrito em Buenos Aires em 1950, o texto foi concebido originalmente como parte do romance ``El Examen" -do qual o intelectual portenho Andrés Fava é personagem. Mas o ``diário" acabou crescendo mais que o previsto e ganhando vida própria, a tal ponto que Cortázar resolveu separá-lo do corpo do romance e encará-lo como um livro autônomo.
O curioso é que o escritor, mesmo tendo corrigido e revisado os dois livros (o romance e o ``diário"), decidiu não publicá-los enquanto estivesse vivo. Deixou-os prontos para uma edição póstuma.
``El Examen" saiu na Argentina em 1986 e obteve rápido êxito de vendas (está já na sétima edição). ``Diario de Andrés Fava", inexplicavelmente, demorou até agora para vir à luz.
A questão prévia é: por que Cortázar guardou na gaveta até a morte esses dois preciosos textos? A leitura deles, à luz da biografia do autor, pode dar algumas pistas.
Cabe lembrar, antes de mais nada, que ambos foram escritos em 1950, um ano antes de o autor partir para Paris e trocar em definitivo a Argentina pela França, país de que se tornaria cidadão em 1981.
Ajuste de contas
``El Examen" narra dois dias na vida de cinco amigos portenhos (dois jovens casais e um jornalista mais velho) que vagam por uma Buenos Aires de sonho -ou antes, de pesadelo- enquanto aguardam o exame final universitário que um dos casais vai prestar.
Uma névoa sufocante envolve a cidade, cogumelos venenosos ameaçam a saúde pública, uma massa de fanáticos venera ossos expostos numa tenda na Plaza de Mayo, ocorrem atentados, explosões e incêndios sem explicação.
Quando o romance foi publicado, há nove anos, os argentinos se espantaram com a semelhança profética entre os acontecimentos descritos por Cortázar em 1950 e os que ocorreriam anos depois, por ocasião da morte da primeira-dama Eva Perón (1952) e do conturbado final de governo do ditador Juan Domingo Perón (1955).
Se ``El Examen" era, portanto, uma espécie de ajuste de contas de Cortázar com seu país -caracterizado, em sua visão, pela truculência política e a paralisia intelectual-, ``Diario de Andrés Fava" é um auto-exame, um enfrentamento do escritor com seus próprios fantasmas interiores.
Pois, para o leitor de Cortázar que se debruça sobre o ``diário", fica logo evidente que Andrés Fava é mais que um ``alter ego" do escritor: é o próprio Cortázar.
Por sua estrutura heterogênea e fragmentária -pequenas observações, anedotas, relatos brevíssimos, citações, diálogos-, ``Diario de Andrés Fava" se aproxima dos chamados volumes de ``miscelânea" do escritor, como ``Histórias de Cronópios e de Famas" (1962), ``La Vuelta al Diá en Ochenta Mundos" (1967) e ``Um Tal Lucas" (1979).
Assim como esses livros, o ``diário" dilui as fronteiras entre os gêneros, fazendo interpenetrar-se o ensaio, a ficção, as memórias e a poesia.
Nesse texto ao mesmo tempo denso, complexo e de uma leveza exemplar, encontramos um artista preocupado, essencialmente, com a linguagem e seus limites.
``Diario de Andrés Fava" flui naturalmente como uma ``conversa entre homens inteligentes" (definição de Ezra Pound para a poesia), mas sem nenhuma formalidade ou pedantismo. É, em suma, uma conversa de bar, aberta aos movimentos, humores, cores e vozes que vêm da rua.
Inquietações morais
As observações de Fava/Cortázar passam em revista desde os cânones da literatura realista até a inércia que impede a linguagem escrita de acompanhar a rapidez das mudanças da linguagem oral; dos lugares-comuns da tradição espanhola e argentina às relações entre experimentos literários e improvisação musical.
Mas as inquietações mais profundas do livro são de ordem filosófica e moral. Até que ponto a linguagem pode dar conta de realidades da matéria e do espírito -e até que ponto ela própria cria essas realidades? Em que o escritor pode contribuir para tornar mais pura, menos poluída de hipocrisia e imobilismo, a fala humana?
Quem conhece a obra de Cortázar reconhecerá neste livro as questões que o atormentaram até a morte, mas também os autores que o ajudaram a esclarecê-las: Mallarmé, Gide, Blake, Hõlderlin, Borges, Malraux, Valéry.
Reconhecerá, sobretudo, o estilo original e inconfundível do autor, um estilo que salta do grave ao cômico, do anedótico ao reflexivo, com a desenvoltura de um improviso jazzístico, multiplicando surpresas que iluminam ao mesmo tempo a literatura e a vida.
Pensando bem, foi bom terem demorado tanto para publicar ``Diario de Andrés Fava". Quem dera cada década pudesse ver surgir um Cortázar inédito.

Livro: Diario de Andrés Fava
Autor: Julio Cortázar
Páginas: 126
Encomendas: livraria Letraviva (tel. 011 285-0874)

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