São Paulo, quarta-feira, 14 de junho de 1995
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Progresso transporta sujeito para objeto

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Um escritor austríaco do século 19, Johann Nestroy, disse que "em geral o progresso parece ser maior do que realmente é". Mais tarde, Freud melhorou a frase, dizendo que "todo progresso nunca tem mais da metade das dimensões que parece ter no início."
Lembrei-me disso ao folhear as páginas do livro recentemente publicado pela editora Ensaio, "Ciência e Tecnologia Hoje". Trata-se de uma espécie de enciclopédia sobre as descobertas científicas e expectativas de inovação tecnológica no fim-de-século.
Os verbetes põem o leitor entre a fascinação e o pânico: vão dos "limites da cirurgia coronária" às aplicações dos cristais líquidos; fala-se de "luz concentrada" e "matéria mole", de eletrônica molecular e motores limpos.
No capítulo dedicado à vida cotidiana, entretanto, o livro se mostra um pouco decepcionante. Refere-se às mudanças na alimentação causadas pelo forno de microondas, acena com a possibilidade de um metrô totalmente automatizado, faz algumas críticas aos CDs, explica a TV de alta definição... e fica praticamente nisso.
Um amigo se queixava, outro dia, da relativa pobreza das conquistas tecnológicas mais recentes. Estávamos acostumados a pensar que, no ano 2.000, o mundo seria parecido com o dos Jetsons. Turismo em Júpiter, robôs domésticos, e, em vez de carros, discos voadores individuais.
Mas o ano 2.000 está chegando sem nada de tão espetacular. Nem mesmo o telefone com visor de TV acoplado, coisa aparentemente simples, está à disposição do consumidor. Um congestionamento de trânsito é um congestionamento de trânsito, seja dentro de um Studebaker 41 ou de um Subaru 94.
Passaram-se 50 anos, e os aviões continuam com cara de avião, os carros com cara de carros; apesar de algumas melhorias tecnológicas, não se vai hoje ao dentista com maior disposição do que há 30 anos.
O progresso técnico parece ser mais lento do que pensávamos. Ou será que não? Tentei argumentar com o amigo cético. Se entrássemos numa máquina do tempo, voltando para 1973, por exemplo, ficaríamos não só surpreendidos com a tecnologia então vigente, mas também surpreendidos pela quantidade de inovações que não nos surpreendem mais.
Um bom teste para simular essa situação é o de pensar, não nos objetos novos que surgiram, mas nos objetos que desapareceram.
A psicanalista Anna Veronica Mautner, no seu livro "Crônicas Científicas" (editora Escuta) pergunta se alguém ainda sabe o que é o anil. Outro dia encontrei o produto no supermercado: Anil Colman, um cubinho embrulhado como caixa de fósforos, que continha uma substância seca, pulverulenta, do mais intenso azul, servindo para branquear a roupa antes das máquinas de lavar.
Muitas coisas desapareceram como o anil. O litro de leite, por exemplo, que era de vidro. O velho telefone preto, pesadíssimo hoje em dia, que se discava em vez de digitar. A gilete, coisa azulada, delicada e perigosa, trocada pelos atras e probaks.
Outras coisas estão em vias de desaparecimento. Do disco de vinil, nem se fale. Mas a lâmpada comum já parece totalmente arcaica, na forma e nos filamentos à mostra. É coisa do passado, parece tirada dos laboratórios de um antigo filme de Frankenstein. E os óculos? Há algo mais medieval do que óculos, mais primitivo? Lápis, antigo até no nome. Fósforos. Quem usa fósforos?
Outro bom exercício seria pensar o que acharia alguém de 1973 se pegasse a máquina do tempo e viesse aos dias de hoje. Creio que se surpreenderia com três coisas que não nos surpreendem mais.
A primeira é que tudo ficou mais colorido. Jornais coloridos, por exemplo, seriam um sintoma de modernização com o qual estamos perfeitamente acostumados. A televisão, no Brasil ficou colorida depois de 74. Geladeiras eram brancas. Discos eram pretos.
A segunda coisa corresponde a um progresso na invisibilidade. Víamos o prato de uma vitrola girando, assistíamos ao funcionamento do motor. Hoje, o aparelho de CD não mostra o que acontece. A medicina, à medida que se volta para a manipulação genética e para as técnicas não-cirúrgicas, é mais discreta, menos obscena.
O terceiro progresso se refere à eliminação da idéia de "processo", de "transição". O exemplo mais simples é o do forno de microondas. Não só é invisível a sua atuação, como também acaba a demora, com a "cozinha" no sentido mais amplo do termo. Antigamente, cozinhar era também assistir a um processo lento, a uma demorada ebulição material. Hoje a transição do cru ao cozido é quase instantânea. E não só na cozinha.
A substituição do analógico pelo digital corresponde à mesma mentalidade. Nunca foi possível perceber o movimento de um ponteiro de relógio, o momento em que se passa das quatro para as cinco da tarde no sistema analógico. O sistema digital opera em pulos de cristal líquido; aqui são quatro horas, aqui são cinco horas.
Desaparecem também os objetos que, por natureza, funcionavam como agentes de uma transição. Os intermediários entre uma coisa e outra. A saber, o dinheiro (cartões eletrônicos) e o papel (tela de computador). A própria idéia de transporte, levar uma coisa de um lugar a outro, muda quanto se tem um fax ou sabe-se lá o quê inventarão daqui a pouco.
Um forno de microondas ou um relógio digital podem parecer pouco diante das promessas de robôs e discos voadores que preenchiam nossas expectativas quanto ao século 21. Mas talvez signifiquem uma mudança mais profunda. Acima de tudo, um comportamento no qual palavras como "mudança", "transição", "espera", deixam de ter significado.
Desaparece a idéia de "passagem" de um estado a outro. O conceito de maturação deixa de fazer sentido. E, com ele, o conceito de memória. Memória passa a ser assunto de computadores; minha experiência pessoal está guardada em dois ou três videocassetes; não preciso sequer me lembrar da tabuada, ou da frequência de minha estação de rádio favorita.
O sujeito se transporta para o objeto. O aparelho eletrônico ganhou memória, o usuário perdeu-a. E talvez seja por isso mesmo que receba com tanta naturalidade o progresso tecnológico. Não se lembra mais de como era antes. A ficção científica é coisa do passado; supõe maravilhamentos subjetivos e uma certa consciência do que havia antes, que o mundo moderno dissolve por completo.

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