São Paulo, domingo, 18 de junho de 1995
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Médiuns cortam, tiram carne e vomitam

APJ
DO ENVIADO ESPECIAL AO RIO E ABADIÂNIA (GO)

Em algum ponto obscuro do universo, hiper-real e farsa se superpõem, se amalgamam. Ao assistir operações espíritas no Rio e Goiás, me senti habitando exatamente essa dimensão de desvios, em que se acredita que é preciso ser ultra-explícito para ser crível. Onde nada fica para a imaginação.
Benedito Ferreira da Silva, o Dito de Jacarepaguá (Rio), faz as ``cirurgias" plasticamente mais bizarras que vi. Fiquei ao lado dele durante quatro ``operações". A primeira: câncer no seio.
Dito me entrega um retângulo de algodão para que eu examine. Devolvo rapidamente. Ele insiste: quer que eu olhe melhor, ``para ver que não há nenhum truque" (depois aprendi que esse procedimento, em magia, se chama ``misdirecting", ou distração: enquanto você fixa atenção em um lugar, acontecem em outro coisas que não deveriam estar acontecendo).
Dito coloca o algodão sobre o seio da doente. Joga água e um líquido vermelho por cima. De repente, o seio já parece estar aberto. Uma incisão de cerca de 5 cm expõe o que poderiam ser as entranhas dela.
Dito pega uma tesoura. Coloca-a em minha mão. Guiando meu braço, grita: ``Pense em Deus!". A tesoura entra pelo corte.
A paciente diz não sentir dor.
Dito agora assume o comando. Diz estar incorporando o espírito de um médico espanhol, Orlandy Pereira de Meneses. Relata que o espírito guia só suas mãos e o cérebro. Incorporações completas, segundo ele, só são necessárias em casos gravíssimos.
Mostra a carne para a paciente. ``Ó aqui, ó!" Tirado o algodão, o corte desaparece. Não há cicatriz. A operação levou um minuto.
Vamos para o leito ao lado. Agora, Dito diz estar fazendo uma extração de próstata.
Retira do corte um tecido seco, sem sangue nem inervações. Esfrega a ``próstata" na mão da fotógrafa, que ele deixou entrar, mas sem a máquina. ``Está vendo? A próstata é como um sebinho."
Caso seguinte: um inchaço no pescoço de outra mulher. Dito diz que é inflamação da tireóide. Coloca a mão direita sobre o pescoço da doente. Com a esquerda, segura a mão esquerda dela.
Dito começa a vomitar. Sai de sua boca um líquido amarelo, com um pouco de sangue. Por fim, expele um pedaço de carne de cerca de 4 cm de diâmetro. Tira a mão do pescoço da mulher. A inflamação, de fato, diminuiu.
Pede um copo de água. ``Tinha muito pus", justifica.
João Teixeira de Faria, que ``opera" em abadiânia (GO), usa métodos mais violentos, não cobre a área da ``cirurgia" e tem um gestual pausado, menos próximo da magia.
Eu estava ao lado dele quando raspou as córneas de um doente com uma faca de cozinha e extraiu dos olhos uma calosidade opaca. Sacudiu a faca. Jogou tudo no chão do galpão onde atende.
Reclamou comigo porque cruzei os braços durante a ``cirurgia" ocular. ``Não cruza os braços que ele sente dor." João diz que encostar um braço no outro dá ``curto-circuito" na energia do corpo.
Não precisava tanta teoria. A parte frontal do olho não tem o tipo de neurônio que dispara o sinal da dor. É por isso que, se um cisco entra por trás da lente de contato, o portador pode destruir a córnea sem perceber nada, sem sentir dor.
João tem olhar perdido. Afirma estar incorporando o espírito do ``dr. Augusto Almeida".
As ``operações" continuam. Unha encravada, tumor no nariz, desvio na coluna.
No fim do dia, resta em mim a mesma sensação provocada pelas operações do Dito de Jacarepaguá. Distanciamento, uma estranha indiferença. De ter visto coisas impressionantes, mas sem importância. De ter visitado um mundo de simulacros, em que tudo é mais real que o real.

ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR, 32, editor-chefe do ``Notícias Populares", é graduado em química e jornalismo pela USP, com especialização em jornalismo científico pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (EUA).

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