São Paulo, domingo, 18 de junho de 1995
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A sublimação do medo racial

FERNANDO CONCEIÇÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O mundo está explodindo aqui dentro e lá fora. Certamente há coisas menos estéreis e mais importantes na agenda do movimento negro brasileiro do que trocar firulas acerca da preferência sexual de Zumbi, no tricentenário de seu assassinato.
Ao debruçar-me nas "cinco pistas" propostas pelo antropólogo Luiz Mott como provas cabais da homossexualidade daquela personagem histórica (Mais!, 28/05/95), o fiz no espírito de empreender uma crítica no campo acadêmico -jamais pessoal ou dogmático- das falhas metodológicas no trabalho do antropólogo.
Quando replicou meu artigo (Mais!, 04/06/95), o professor de antropologia fugiu do debate interno a que se propunha a minha crítica, resvalando para os xingamentos pessoais e acusando-me de homofóbico. A discussão proposta por Mott e seus publicistas não é tanto sobre o significado político da existência de Zumbi dos Palmares. Todos se conchavam no propósito de não explorar o sentido revolucionário da República dos Palmares, que em certa medida é a síntese das contradições vivenciadas até os dias de hoje pelo Brasil.
O falso debate a que se presta o líder do Grupo Gay da Bahia (GGB) visaria exorcizar, pela sublimação, o temor que os ideólogos do mito da democracia racial brasileira possuem, seu medo recalcado em relação ao negro.
Nenhum dos articulistas que vieram a público suspeitaram da validade acadêmica da pesquisa de Mott. Nenhum pôs dúvida sobre a autoria do ataque feito contra o muro da casa e o automóvel do antropólogo. Todos, inclusive Mott, acusaram sem qualquer prova o movimento negro.
Quando falei na última vez ao telefone com Mott, dele ouvi que desconfiava ser o ataque de autoria de um conhecido desafeto seu em Salvador (não-negro). Deixarei que ele decline o nome, para não tirar-lhe a exclusividade da notícia e permitir-lhe que afaste a pecha que tentou pregar no movimento.
Em relação à mídia, talvez valha a pena contextualizar sua atitude no episódio como uma questão mercadológica. Isso poderia explicar a generosa repercussão que deu à mise-en-scène de Luiz Mott.
Passemos às duas contestações feitas ao meu artigo. Ele continuou afirmando que o termo "quimbanda" é sinônimo de homossexual, "amante do mesmo sexo". Solicito ao leitor que vá ao "Novo Dicionário Aurélio" e ali encontre o vocábulo: "Quimbanda (Do quimbundu, kimbanda, `curandeiro'.) S.m. 1. Em Benguela, adivinho ou médico indígena. 2. Bras. Grão-sacerdote do culto banto, simultaneamente médico, feiticeiro e adivinho. 3. Local de macumba. 4. Processo ritual de macumba". Do mesmo modo, o "Dicionário Complementar Português-Kimbundu-Kicongo", do padre Antônio da Silva Maia (Lisboa), estabelece kimbanda como o mesmo que "feiticeiro".
Ao fazer a citação do padre Cavazzi de Montecúccolo, missionário capuchinho que explorava a região de Angola-Congo, o autor dos "cinco disparates sobre Zumbi" agiu de má-fé, recortando os trechos mais adequados à confirmação de suas "hipóteses". Transcrevo a "Descrição Histórica dos Três Reinos do Congo, Matamba e Angola", de Cavazzi:
"Entre tantos feiticeiros, um há que não mereceria ser lembrado, se esta omissão não prejudicasse o conhecimento necessário que eu, por meio deste escrito, pretendo dar aos missionários. Chama-se nganga-ia-quimbanda, ou `sacerdote chefe do sacrifício'. Este homem, tudo ao contrário dos sacerdotes do verdadeiro Deus, é moralmente sujo, nojento, impudente, descarado, bestial, e de tal modo que entre os moradores de Pentápolis teria o primeiro lugar. Para sinal do papel a que está obrigado pelo seu ministério, veste fato e usa maneira e porte de mulher, chamando-se também `a grande mãe'. Não há lei que o condene, como não há ação, por enorme que seja, que não lhe seja permitida. Portanto, fica sempre sem castigo, embora abuse sem embaraço da sua impudência, tão grande é a estima que por ele o Demônio inspira! Por isso são julgados favores os mais manifestos ultrajes que ele faz à honra dos casados ou às concubinas dos mais guardados haréns".
Uma leitura diferente da feita pelo líder do GGB poderia asseverar que o nganga-ia-quimbanda era um devasso de marca maior, que não deixava passar as mulheres casadas e fazia a festa às concubinas dos haréns. Isto não exclui a possibilidade de entre eles existirem "amantes do mesmo sexo" -e por que não? Em momento algum rebati essa possibilidade, apenas não referendo as afirmações peremptórias e totalitaristas do folclórico antropologista.
Outro ponto que defendi, contestando o heterofóbico Mott, diz respeito ao termo "Sueco" -que no seu artigo originário transformou-se em "apelido Sueca"-, atribuído a Zumbi e apresentado como uma das pistas de que o herói jogava no time do GGB.

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