São Paulo, domingo, 18 de junho de 1995
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DUAS AMIGAS

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

As cartas não só não mentem jamais como costumam render livros de excitante leitura. As que a pensadora alemã Hannah Arendt (1906-1975) escreveu e recebeu já renderam pelo menos duas obras, ambas no prelo da Relume Dumará para a próxima Bienal do Livro do Rio de Janeiro (que ocorre entre os dias 16 e 27 de agosto).
O primeiro volume contém parte de sua extensa correspondência com o filósofo Karl Jaspers (1883-1969); o segundo abriga todas as cartas que ela trocou, durante 25 anos, com a escritora norte-americana Mary McCarthy (1912-1989), sua melhor amiga e testamenteira.
Tudo isso faz parte de um pacote Hannah Arendt. No segundo semestre, a Relume Dumará lançará "O Que É Política", coletânea das conferências que ela fez na Alemanha da década de 70, e a elogiada biografia escrita por Elizabeth Young-Bruehel, "Por Amor do Mundo".
Hannah e Jaspers eram conterrâneos e filósofos, compartilhavam a mesma cultura e os mesmos flagelos (maiores detalhes à pág. 5-9). Com Mary McCarthy, foi outra história. E não apenas porque pertenciam ao mesmo sexo e haviam sido criadas em mundos diferentes.
Nada fazia crer que entre as duas, com temperamentos opostos, pudesse florescer uma amizade tão sólida e duradoura.
Hannah era judia, tímida, estóica, sedentária, fiel ao mesmo homem (Heinrich Bluecher, gentio e ex-comunista) e à mesma cidade que adotou após fugir do nazismo.
Mary era católica, inquieta, volúvel no amor (casou-se quatro vezes, teve vários amantes) e infiel às suas raízes.
Hannah trocou a Europa por Nova York. Mary trocou Nova York por Paris. Se protagonistas de uma fábula, Hannah seria a formiga e Mary, a cigarra.
Quando ambas tinham seis anos, Hannah perdeu o pai e Mary, o pai e a mãe. Hannah foi companheira de cama e escrivaninha do filósofo Martin Heidegger (a correspondência entre os dois continua lacrada nos Arquivos Literários de Marbach, na Alemanha). Mary não fez por menos, casando-se com o maior crítico literário dos EUA, Edmund Wilson.
Outra coincidência: Hannah fugiu da Alemanha no mesmo ano (1933) em que Mary diplomou-se em Vassar.
Em 1963, as duas enfrentariam, simultaneamente, a ira dos seus pares. Hannah por conta de um polêmico ensaio-reportagem sobre a responsabilidade dos judeus no holocausto nazista ("Eichmann em Jerusalém") e Mary, por obra de um inconveniente romance "à clef" sobre as moças de Vassar ("O Grupo").
Conheceram-se no bar Murray Hill, Manhattan, 1944. Mary impressionou-se com a "inteligência cética" de Hannah. "Ela transbordava de vitalidade", recordaria 41 anos mais tarde para a organizadora da coletânea, Carol Brightaman, também autora da biografia mais completa da escritora, "Writing Dangerously: Mary McCarthy and Her World", lançada há três anos.
Na primavera seguinte, outro encontro, no apartamento do poeta Robert Lowell, um dos mais frequentados pelos intelectuais nova-iorquinos. Presente a nata das revistas "Partisan Review", "The New Yorker", "The Nation" e "The New Republic".
A horas tantas, meio para "épater" os circunstantes, Mary confessa ter pena de Hitler, pelo seu patético e insatisfeito desejo de ser amado pelos franceses. Hannah não aguenta e explode: "Como você tem coragem de dizer uma coisa dessas na minha frente -eu, vítima de Hitler, uma pessoa que esteve num campo de concentração".
As duas haviam mentido. Nem Mary sentia pena de Hitler, nem Hannah estivera num campo de concentração.
Por quatro anos, Hannah e Mary não se falaram. Numa friorenta tarde de 1949, à saída de uma reunião em torno de uma revista política prestes a ser criada, Hannah tomou a iniciativa de estender a mão à desafeta. "Que bobagem essa briga. Nós duas temos tantas idéias em comum" -disse Hannah. Mary concordou, e ambas seguiram pela plataforma do metrô como Humphrey Bogart e Claude Rains no desfecho de "Casablanca".
Foi, de fato, o início de uma bela amizade, que durou até a morte de Hannah, em 1975.
O primeiro contato via correio também partiu de Hannah: um curto bilhete elogiando o recém-publicado romance da amiga, "The Oasis".
Mais dois anos se passam até a chegada da primeira carta de Mary. "Li seu livro, absorta, nas duas últimas semanas, na banheira, no carro, na fila do mercado". Mary se referia a "As Origens do Totalitarismo", que considerava tão "absorvente e fascinante como um romance". Um trágico romance sobre o inferno criado pelo próprio homem, com traços de Conrad, Kafka, Orwell e Yeats.
Também se lê "Entre Amigas" como se fosse um romance, epistolar, sobre tragédias coletivas, dramas pessoais e trivialidades cotidianas, tendo como pano de fundo um dos períodos mais agitados deste século.
Em 1951, quando Mary postou sua primeira carta para Hannah, o maccarthismo já entrara em cena. Seguem-se guerras (Argélia, Vietnã), agitações estudantis (Berkeley, Paris), o escândalo Watergate e a montante terrorista -flagelos por sinal concentrados no último romance escrito por Mary, "Canibais e Missionários".
Contra um cenário de perdas sucessivas -a desilusão com algumas utopias, a decadência física, a perda de amigos, a cretinização da esfera pública, a destruição da natureza-, Hannah e Mary se revelam duas mentes poderosas em busca de uma transcendência moderna, de uma forma ética de convivência com o mundo herdado da Segunda Guerra Mundial. Em busca, enfim, de um mundo menos torpe e cruel.
A formiga e a cigarra eram duas almas eretas, teimosas e quixotescas, dominadas por um implacável senso de justiça. Ou, como diz Brightman no prefácio das cartas, "duas bandeirantes que nunca deixaram o fogo se apagar".
Hannah, de certo modo, preencheu o vazio intelectual que a separação de Edmund Wilson deixara na vida de Mary. Hannah foi, para ela, uma espécie de mentora. Mary a tratava com reverência, preocupando-se em não entediá-la e desculpando-se por não ser tão erudita quanto ela. Hannah parecia ler tudo com ternura maternal, e depois enviava conselhos, inclusive a respeito de questões envolvendo "os meandros emaranhados do coração".
Salvo por um voto de desconfiança de Susan Sontag -que, segundo Mary, teria dado em cima de Hannah numa festa-, é ínfimo o estoque de fofocas literárias em "Entre Amigas".
É possível que até Mary guardasse o melhor de sua maledicência para trocas de idéias mais voláteis. Numa das cartas, ela desanca a antropóloga Margaret Mead ("um monstro"); em outra, postada no auge da revolta de maio de 68 em Paris, condena o desempenho "risível e repugnante" dos literatos parisienses (e, em particular, da escritora Marguerite Duras e do grupo de revista "Tel Quel"), que pregavam uma total entrega da literatura à doutrina marxista-leninista. Simone de Beauvoir não conta, pois dela Mary sempre falou mal.
Em pelo menos duas oportunidades, Mary revela-se má profeta. Previu que a França não tinha como sair do buraco depois dos acontecimentos de maio de 68: "É um país devastado. Eu mesma não vejo como pode começar de novo sem uma revolução". E subestimou a força maléfica dos militares comandados pelo general Pinochet. "Você não acha que o Chile é pequeno e fraco demais para se tornar um regime totalitário?", indagou numa carta, escrita um mês depois da derrubada de Salvador Allende.
Infelizmente, não está em nenhuma das cartas de Mary o que ela realmente achava de Hannah. "Era uma conservacionista", disse nos funerais da amiga, "que não acreditava em jogar fora nada que um dia fora pensamento". Qualquer pensamento, para Hannah, podia vir a ser útil. Útil para qualquer experiência humana.
Ao morrer, Hannah deixou uma lauda, praticamente em branco, em sua máquina de escrever. No alto, duas epígrafes, uma do poeta romano Lugano e outra de Goethe, e um título, "Judging". Até o último suspiro, Hannah fez questão de julgar o mundo em que viveu.

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