São Paulo, quarta-feira, 21 de junho de 1995
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Libertação sexual abandona fator escândalo

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Tornou-se comum afirmar que o surgimento da Aids determinou o fim da era da libertação sexual. É uma daquelas frases que, de tanto repetidas, deixam de ser objeto de debate.
A Aids certamente modificou o comportamento das pessoas. Mas veja-se a Conferência Gay que se realiza no Rio. Não é sinal de que, com as ameaças representadas pela doença, o movimento pela desrepressão dos costumes se mostra mais enfático do que nunca?
Chego a pensar que a Aids, paradoxalmente, tem sido um fator importante na derrubada dos preconceitos. É evidente que serviu de motivo, inicialmente, para atitudes ainda mais discriminatórias contra os homossexuais. Mas, com o passar do tempo, as coisas mudaram de rumo.
Como a doença pode atingir qualquer segmento da população, fortaleceram-se laços de solidariedade e mobilizações comuns, indiferentes à opção sexual de cada indivíduo. O preconceito continua existindo; mas o respeito sem dúvida aumentou.
O mais importante efeito da Aids nesse campo foi, contudo, o das campanhas pelo uso da camisinha. Diante dos perigos de contaminação, vários tabus vão sendo varridos.
Por exemplo. Com tanta propaganda de camisinha na televisão, creio que a ignorância das crianças em matéria sexual diminuiu muitíssimo. A educação sexual teve de acelerar-se, com os pais querendo ou não que isso acontecesse.
Sexo na adolescência, nem se fala. O que todo mundo sabia existir passou a ser reconhecido, e o assunto simplesmente mudou de foco. Se uma filha de pais tradicionais passasse a noite fora, há alguns anos, isso seria motivo de escândalo, ou pelo menos de preocupação. Hoje, a preocupação é outra: está levando camisinha? Sim. Alívio. O fato antes decisivo -sexo antes do casamento- deixa de sê-lo; o decisivo agora é usar camisinha.
Esse foco se estende ao comportamento sexual em geral: do adultério ao homossexualismo, desenvolve-se uma ética que é mais a da prudência que a do pecado.
Não é por outra razão, aliás, que a Igreja Católica tem tanto ódio da camisinha. Nunca entendi por que admite a recurso à tabelinha como forma de evitar a procriação; pois com isso admite o sexo sem fins reprodutivos, e a camisinha em si seria apenas um método como qualquer outro.
Mas o problema é que a camisinha tornou mais livre a discussão, exercendo um papel explicitador, diria mesmo confessional, em toda a sociedade. Antes da Aids, o sexo podia ser feito com culpa ou sem culpa -e sobre assunto a igreja detinha seus critérios de avaliação. Os movimentos de libertação debatiam-se contra algo imaterial, psicológico. Claro que o problema da culpa continua a existir; mas está em jogo cada vez mais a dualidade entre sexo com risco e sexo sem risco; alternativa não espiritual, mas técnica.
A Aids também mudou o enfoque sobre as drogas. A partir do momento em que se distribuem seringas para os dependentes, a sociedade inteira se torna menos hipócrita, mais liberal; raciocina em termos de ``mal menor" e parece usar uma construção gramatical liberalizante por excelência: "Já que é assim...
Não estou fazendo, obviamente, nenhuma apologia da Aids. É que se tornou impossível reverter o movimento de liberalização dos costumes: como este já estava consolidado antes do aparecimento da doença, o problema foi tratado segundo uma ótica progressista. E esse progressismo se intensificou, ao contrário do que se costuma afirmar.
A repressão tradicional parece tão derrotada, e os preconceitos quanto ao comportamento sexual tão em baixa, que eventos como a Conferência Gay têm menos o aspecto de polêmica que de espetáculo: reivindicam e discutem direitos, sem dúvida, mas antes de tudo são comemorações.
Que apareçam tantos subgrupos e tipos diferentes de atitude homossexual seria, na verdade, decorrência de um estágio avançado de liberação. As diferenças não pedem permissão para existir, mas antes se exibem, numa estratégia política em que a luta contra o preconceito se baseia quase que numa teatralização da própria identidade; seja na ironia contra o estereótipo da identidade (caso das drag queens), seja no narcisismo da auto-afirmação.
É um pouco mania de nossa época assinalar tudo em termos de "era nova, "fim de uma era etc. Há uma necessidade de periodização constante, que passa pela voga do conceito de "pós-moderno e pela voga equivalente em torno do "fim do pós-moderno. Toda luta de boxe é "a luta do século, e até um carro da Volks, agora, é apresentado na publicidade como "o carro do século, e nem mesmo se trata do Fusca.
Falar do fim da era da libertação sexual com a Aids é talvez um efeito de nossa obsessão periodizante e da urgência de acabar com todas as "eras junto ao fim do século. A era da libertação sexual parece longe de ter terminado. Talvez o que esteja terminando é a era do escândalo que essa libertação tinha provocado inicialmente.

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