São Paulo, quinta-feira, 22 de junho de 1995
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Fingindo de morto, mas rindo

MOACYR SCLIAR

A faxineira de minha vizinha é uma senhora de idade, muito lúcida, sempre disposta a um bom papo, inclusive sobre os assuntos mais inusitados.
- Você leu sobre essa aposentada que guarda o caixão em casa? Perguntou-me dia desses.
- Li -respondi, cauteloso: nunca se sabe que tipo de reflexão essas coisas evocam nas pessoas. Aqui em Porto Alegre, havia um time de futebol, o Cruzeiro, que vendeu seu estádio (situado num lugar muito apropriadamente denominado Colina Melancólica) a um cemitério, recebendo o pagamento em jazigos perpétuos -com os quais, por sua vez, comprava jogadores. Um desses, entrevistado no rádio, declarou que fora adquirido por quatro túmulos. E bem deprimido estava ele: não são todos que gostam de falar desses temas mórbidos. Mas a loquaz senhora não parecia impressionada.
- Boa idéia, essa, de comprar o caixão com antecedência. Essas coisas a gente não deve deixar para a última hora.
Fez uma pausa e acrescentou:
- Aliás, quase comprei um caixão. Isso foi quando o meu marido, aquele cretino, me abandonou. Fiquei muito triste, achei que ia morrer. E aí comecei a percorrer as funerárias, olhando preços e modelos. Finalmente me decidi. Era um caixão belíssimo, em madeira de lei, cheio de enfeites dourados. Por dentro, forrado de cetim -uma maravilha! Caixão para uma rainha, disse o dono da funerária, e estava certo.
- E aí? Comprou?
Suspirou:
- Não. Não comprei. E não comprei por causa do meu marido. Ele me abandonou muitas vezes, mas voltava quando eu menos esperava. Aí se escondia nos lugares mais estranhos, dentro de um armário, embaixo da cama. E quando menos eu esperava, aparecia. Agora, com o caixão em casa, adivinha onde é que ele iria se esconder. Ficaria ali, fingindo de morto, mas rindo. Avacalhando o meu caixão. Desisti.
E arrematou:
- Esses dias ouvi dizer que ele tinha morrido. Aposto que foi enterrado num caixão de quinta categoria. Mas também aposto que estava rindo. Essa gente não tem respeito por caixão. Nenhum respeito, é o que lhe digo.

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