São Paulo, quinta-feira, 22 de junho de 1995
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Bodas de papel

RICARDO SEITENFUS

"Para que servem os grandes horizontes que o mundo oferece, quando nossos sapatos nos apertam?"
Provérbio sérvio

No cinquentenário da elaboração da Carta de San Francisco, documento basilar da Organização das Nações Unidas (ONU), brilham as conferências e os festejos. Foguetes espoucarão nos quatro cantos da Terra, deixando à sombra o verdadeiro -e marginal- papel da ONU no sistema internacional do pós-Segunda Guerra Mundial.
Os 20 milhões de mortos e 25 milhões de refugiados das mais de 200 guerras convencem de que uma terceira e definitiva guerra mundial foi evitada não pela ONU, mas em razão do equilíbrio pelo terror, praticado pelos EUA e União Soviética. Raymond Aron o definiu como uma situação de ``paz impossível e de guerra improvável".
Os acordos para a limitação da corrida armamentista, apesar da Comissão de Desarmamento da ONU, foram negociados diretamente entre as potências nucleares que monopolizaram a pesquisa em tecnologia dual (para fins militares e civis).
O fracasso na área do desenvolvimento econômico é igualmente flagrante. Apesar das extraordinárias descobertas científicas e do aumento da produtividade, criaram-se categorias estanques de países, segundo sua performance econômica. O papel marginal é desempenhado por 80% deles, especialistas em áreas com escassa tecnologia agregada. Atualmente, o fenômeno de globalização serve de biombo para o discurso liberalizante e a prática excludente dos países industrializados, ao que a ONU só consegue responder com palavras vazias e reuniões frustrantes.
Todavia, a área social oferece ainda maiores decepções. A fome, a miséria, o desemprego, o analfabetismo, a violência, a xenofobia, que atingem centenas de milhões de pessoas, são manifestações inequívocas de que a batalha para melhorar as condições humanas foi também perdida pelas Nações Unidas. A riqueza concentra-se num pequeno grupo de países que, como caramujos, fecham-se aos contatos com a grande massa dos países depauperados. A ONU tampouco conseguiu convencer as elites dirigentes dos países do Sul a praticar um mínimo de justiça social.
As várias campanhas da ONU em torno de temas específicos, como os direitos da mulher, a proteção ao meio ambiente, a luta contra a tortura e pelo respeito às minorias, contrastam as energias e recursos financeiros consumidos com os medíocres resultados, levando De Gaulle à sua famosa definição: a ONU não passa de um ``machin", algo indefinível e certamente desprezável.
As razões desses fracassos são numerosas. O mal-entendido original ainda é presente: a ONU foi criada pelos vencedores da Segunda Guerra Mundial para controlar os vencidos, mas logo paralisou-se em razão da disputa Leste-Oeste. Tanto Washington quanto Moscou perceberam que deveriam utilizar a ONU como palco para a sua atuação internacional, jamais como um elemento cerceador de seu poder.
Ora, o mundo, sobretudo o Sul, percebia a ONU como o incontornável caminho para a realização de seus objetivos internacionais, políticos e econômicos. Mas o realismo dos fortes, adicionado ao idilismo dos fracos, compôs a infalível receita para a cristalização da injustiça e a reiteração do fracasso.
A escassa eficiência é compensada por ampla e pesada burocracia. Dezenas de instituições são criadas, muitas delas com objetivos contra ou sobrepostos. O chamado ``fenômeno funcionalista" invade o sistema. Cria-se a figura do funcionário internacional, o burocrata que supõe representar um poder acima dos Estados nacionais, mas que, de fato, está sob as ordens de 170 chefes, os países membros da ONU.
A ONU transforma-se numa imensa fábrica de letras, com toneladas de papéis oriundos de consultorias, reuniões, conferências, simpósios, assembléias, conselhos e declarações. Parte deles, antes de nascer, já é letra morta. Aos grandes esforços gastos para elaboração, sucede a ausência de vontade e competência para torná-los realidade.
Em face deste pesado balanço, o que deve ser feito para que a ONU cumpra, com eficiência e determinação, o duplo objetivo de manutenção da paz e de busca do desenvolvimento?
É indispensável que ela venha transformar-se em verdadeiro poder comum, com capacidade de sanção, dotada de meios para impor decisões coletivas, mesmo contra a vontade das partes. Além disso, deve-se introduzir o voto ponderado nos processos decisionais. A regra ``cada país = um voto" é uma ficção, pois o financiamento das operações obedece a critérios que levam em conta o peso econômico de cada país.
A reforma do Conselho de Segurança (CS) -o Executivo da ONU- é também imprescindível, para inclusão dos países vencidos na última guerra, tais como a Alemanha e o Japão. Deve haver uma representação do Sul -África, América Latina e Ásia.
Note-se que a vontade brasileira de ingressar no CS não deve ser um capricho diplomático. O ingresso será acompanhado por uma grande responsabilidade, inclusive com o envio de tropas para missões de paz e a certeza de arcar com custos humanos, materiais e financeiros.
Além do mais, o Brasil pretende ser um representante permanente, mas sem direito de veto. Ora, essa é uma idéia tão absurda quanto a de que possuímos um direito natural e exclusivo de representação da América Latina, sem que esta ofereça seu aval. Devemos fazer um rodízio com Argentina e México. Em contrapartida, a atuação do triunvirato terá mais consistência, pois abarcará os mesmos direitos dos atuais membros permanentes.
Finalmente, é preciso reformar profundamente a burocracia da ONU, introduzindo controles externos -não somente financeiros, mas também de resultados, enxugar órgãos inúteis e redirecionar atividades visando aos gastos fins e não meios. Uma vez suprimidos os entraves, poderíamos esperar que, após 50 anos de bloqueio, a ONU encontrasse finalmente o caminho da solidariedade com eficácia, dando nova vida aos multilateralismo.

RICARDO ANTÔNIO SILVA SEITENFUS, 47, doutor em relações internacionais pelo Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais de Genebra, é coordenador do mestrado em integração latino-americana da Universidade Federal de Santa Maria (RS) e autor de ``Para uma Nova Política Externa Brasileira" e ``Haiti: a Soberania dos Ditadores", entre outros livros.

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