São Paulo, sábado, 24 de junho de 1995
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Chorões lutam pelas formas mortas

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

Viver é defender uma forma, orava o compositor dodecafônico Anton Webern (1883-1945) diante dos escombros do Romantismo. Hoje ocorre o avesso; o artista que se preza se mantém por destruí-las.
Uma terceira via corre pelos chorões brasileiros. Pelo menos a crer em cinco lançamentos em pequenos selos, para esses músicos sustentar a forma significa morrer um pouco a cada trabalho.
Não há demérito nisso. Ao contrário, o valor artístico dos chorões reside na derrota que carregam incubada em toda execução.
Forma defunta que teve o ápice nos anos 90 do século passado, o choro recebe às vezes um sopro, um toque, e ressuscita por instantes. Ensaia um lampejo para no segundo seguinte desfalecer, deixando-se conduzir pela corrente principal da MPB como a Ofélia da tela pré-rafaelita.
``Chorinho in Concert", do violonista cearense José Meneses, 73, é o exemplo mais sonante da tentativa de sobrevida por aparelhos alheios à instrumentação original do choro.
Meneses, companheiro de Garoto e líder da banda Velhinhos Transviados dos anos 60, vale-se de orquestra para imprimir classicismo a peças suas, Ernesto Nazareth (1863-1934) e outros.
O velhinho se mostra mais do que transviado na interpretação do ``Moto Perpétuo", de Paganini. Exaure com o cavaquinho a caricata peça de bravura.
Meneses arranca ais nostálgicos em ``Meus Oito Anos", que compôs para o padre Cícero em Juazeiro do Norte, sua cidade natal. ``Eu em pé e ele sentado, ele era maior que eu", lembra Meneses no texto do release.
Nas cordas frouxas de Meneses, a forma se mantém intacta e sorri no ocaso.
Igualmente crepuscular, ``Este Brasil que Tanto Amo!", da pianista Eudóxia de Barros, 59, tenta dar um empurrão no cadáver de Nazareth. Aborda dele 17 composições, inclusive o surrado ``Odeon". O morto não respira.
A industriosa Eudóxia padece de um carma: o espectro de Nazareth não a abandona mais. E vice-versa. Nazareth está colado a ela pela perpetuidade.
Outra pianista se chama Rosaria Gatti, uma professora paulistana quarentona que se diz discípula do maestro Radamés Gnattali, mestre de Tom Jobim. Seu contato com o choro não tem cinco anos.
Ainda assim, ``Zanzando no Chorinho" traz clássicos. É o caso de ``Zanzando em Copacabana", de Gnattali, uma peça cabeluda de harmonias. O estilo brejeiro e saltitante de Rosaria contrasta com o conservadorismo do grupo Nosso Choro, item de museu exumado da esclerótica boêmia paulistana.
Embora não se enquadre no choro, ``A Modernidade da Tradição", do estreante cantor carioca Marcos Sacramento, se deixa vencer pelo espírito de ressurreição e morte súbitas do gênero, principalmente graças ao violonista Maurício Carrilho, 38.
Este tem se revelado um necromante das harmonias ancestrais, dono de técnica e sentimento sem igual em seus pares exibicionistas. Chega ao exagero de transportar uma música de Caetano Veloso -o quase-choro ``Genipapo Absoluto"- dos anos 80 para os 20. Carrilho inverte a utópica linha evolutiva da MPB, fazendo Wilson Batista virar discípulo do ex-tropicalista. Pena Sacramento ser uma heresia; voz frágil, que jamais alça vôo em sambas Noel Rosa e Ataulpho Alves.
Talento maior se alevanta em ``Leite de Coco", do saxofonista, clarinetista e flautista carioca Dirceu Leite. O disco reúne a elite do choro e traz restaurações antológicas. Gravado entre 1992 e 1993, o disco veio como foi no início do ano, desaparecendo das lojas.
Traz os violonistas Dino 7 Cordas e Raphael Rabello (num raro instante de discrição no fim da vida). É obra de engenho. Leite pasma pela sensibilidade exacerbada.
Vale a pena deixar o ``rigor mortis" do choro tingir as almas. Ele vem à noite puxar nossos ouvidos macerados pelas formas em desagregação. Denuncia que todos morremos. É antipop.

Discos: ``Chorinho in Concert" (Cid), com José Meneses; ``Zanzando no Chorinho" (Eldorado), Rosaria Gatti e Nosso Choro; ``Este Brasil que Tanto Amo!" (Comep), Eudóxia de Barros; ``Leite de Coco" (Caju), Dirceu Leite; ``A Modernidade da Tradição" (Saci), Marcos Sacramento
Quanto: R$ 20 (o CD, em média)

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