São Paulo, sábado, 24 de junho de 1995
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Coração aberto de Cristo

LUCIANO MENDES DE ALMEIDA

Tanta gente parece que tem o coração fechado, não se abre aos demais. Outros dão a impressão de ter um coração de pedra, que não se compadece de ninguém. Continua imperando a lei do mais forte e da rejeição do próximo. A acumulação doentia de bens materiais, a busca do prazer e do poder têm a mesma raiz: a falta de amor. O egoísmo assume até formas mais chocantes como a violência contra inocentes, a vingança e o ódio incapaz de perdão.
Tudo isso faz compreender melhor a mensagem divina de Jesus Cristo. Deu-nos, da parte de Deus, o mais sublime exemplo de amor e veio nos ensinar a amar, a transformar, já nesta vida, a convivência humana pela prática da justiça e da caridade. Estamos precisando aprender de novo o amor sincero, gratuito, universal e generoso. No ciclo litúrgico, comemoramos, ontem, este amor de Jesus Cristo com especial solenidade. É chamada Festa do Sagrado Coração de Jesus, colocando em evidência o coração como símbolo perene da caridade de Cristo por nós.
O evangelista São João, ao descrever a crucifixão do divino salvador, narra como o soldado atravessou com a lança o costado de Jesus. De seu lado aberto escorreram sangue e água. A meditação constante da igreja descobriu, nesse fato, o grande sinal da doação total de Cristo. Amou os seus até o fim (Jo 13,1). Daí, a frequente representação na iconografia do coração de Cristo aberto pela lança, fonte de vida nova, atraindo ao perdão os corações endurecidos pelo pecado e ensinando aos discípulos a amar como ele amou.
A riqueza bíblica desse símbolo encontra seu fundamento na grande revelação da misericórdia divina no Antigo Testamento. O amor fiel e invencível de Deus, diante da infidelidade do povo, manifesta-se benévolo e clemente, oferecendo perdão dos pecados e esperança dos bens escatológicos. Lemos no profeta Isaías: ``Pode, porventura, a mulher esquecer-se de seus filhos e não ter carinho pelo fruto de suas entranhas? Pois, ainda que a mulher se esquecesse de seu filhinho, jamais me esqueceria de ti" (Is. 49,15).
A revelação deslumbrante dessa misericórdia transparece nas palavras de Jesus sobre o Pai que perdoa o filho e se alegra com a sua volta (Lc 15,11-32). A mesma alegria Jesus expressa ao falar do bom pastor que procura a ovelhinha perdida até encontrá-la e trazê-la, feliz, aos ombros. ``Haverá, no céu, mais alegria por um só pecador que se converte do que por 99 justos que não precisam de conversão" (Lc 15,7). Das parábolas, Jesus passou à realidade até a expressão suprema do amor na cruz, pedindo ao Pai que nos perdoasse e concedendo ao ladrão arrependido a certeza da entrada, naquele mesmo dia, no Paraíso (Lc 23,43).
Diante das atrocidades na Bósnia, Ruanda e Tchetchênia, de assaltos, sequestros e violências, somos ainda aprendizes do amor de Cristo.
Progrediu muito a ciência cardiológica. No entanto em cada um de nós há muito tecido endurecido, enfartado, necrosado. Para esses tipos de cardiopatia, mais do que pontes de safena, válvulas e transplantes, será preciso ir do símbolo à realidade, dissolvendo obstruções e abrindo caminho para que circule em nós a seiva divina do amor, do perdão e da reconciliação.
Temos, mais do que nunca, necessidade, como o ladrão arrependido, de olhar para o coração aberto de Cristo.

D. Luciano Mendes de Almeida escreve aos sábados nesta coluna.

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