São Paulo, domingo, 25 de junho de 1995 |
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`Detesto pau-d'água e crioulo', diz médico
FERNANDO RODRIGUES
Lopes, 60, prestou depoimento quase sem olhar para o delegado. Enquanto depunha, lia um livro. Mas, na hora de confirmar ou não a frase que gerou a acusação, repetiu-a tal qual seu acusador havia relatado ao mesmo delegado. O acusador é Daniel Correa, 29, vigilante. Sentiu-se diretamente ofendido com a frase do médico, numa noite em que os dois davam plantão juntos no hospital. ``O caso é curioso porque o que mais acontece é a pessoa acusada vir até a delegacia e dizer que não disse nada" afirma o delegado Maurício Freire, que esteve nos últimos 12 meses como titular da delegacia de crimes raciais. Agora, alguém admitiu. E daí? A lei brasileira que trata de racismo não dedica uma palavra a casos como esse do médico. ``Isso vai acabar se transformando, no máximo, em injúria", prevê o delegado Freire. Injúria ou não, o caso é exemplar do comportamento dos brasileiros em relação a negros. A arrasadora maioria, por ``cordialidade" ou vergonha, nunca admitir o que sente. O próprio Cândido da Silva Lopes, agora que o caso foi parar na Justiça, prefere não falar. A Folha o procurou duas vezes por telefone e uma pessoalmente. ``O meu advogado disse que é para aguardar a manifestação da Justiça. Até lá, nada feito", declarou. Ainda assim, Cândido fez alguns comentários breves sobre a sua atitude. Indagado se a frase teria conteúdo racista, disse: ``A frase que eu proferi me dá o direito de gostar de quem quer que seja neste país." Isso significa gostar ou não, independentemente de credo ou cor? ``Exatamente. De credo ou cor", respondeu. Para o médico, tudo é uma questão de liberdade pessoal. ``Eu não sou obrigado a gostar de ninguém. É a minha liberdade pessoal. Não há nada no país que me obrigue a gostar de alguém. Se fosse assim, não haveria divórcio: por lei, todo mundo seria obrigado a gostar de todo mundo", disse. Lopes não considera errado gostar ou não de alguém por causa da sua origem étnica. ``Eu tenho o direito de não gostar. Você pode me obrigar a gostar de amarelo? Ou de judeu? Ou de isso e ou de aquilo? Você não pode me obrigar a gostar. Eu posso ter razões". O caso da frase que lhe rendeu um inquérito policial é simples. Lopes estava trabalhando. Segundo o vigilante Daniel Correa, em 18 de fevereiro passado, ele viu chegar ao pronto socorro do hospital uma família trazendo a mãe para ser atendida. Correa foi avisar o médico Lopes sobre a chegada da enferma. Diz ter ido até a sua sala ``por diversas oportunidades". E que só quando um dos parentes da mulher foi procurá-lo é que Lopes teria prestado atendimento. Quando terminou de atender a doente, Lopes teria dito, dirigindo-se ao vigilante Correa: ``A coisa que eu mais detesto é pau-d'água e crioulo". Daniel Correa, que é negro, reclamou na delegacia próxima ao hospital. Quase um mês depois, em 27 de março, teve de prestar novo depoimento na delegacia de crimes raciais. Repetiu o que já havia dito. E ainda deixou claro que o médico Cândido Lopes nunca o destratara antes. Sete dias depois de Correa, compareceu à delegacia de crimes raciais o médico Cândido Lopes. Sua versão é um pouco diferente da do vigilante. Naquela noite, quando revelou detestar ``pau-d'água e crioulo", Lopes afirma que o vigiliante do hospital teria enviado uma pessoa ``aparentemente alcoolizada" a sua sala. Isso o irritou. Tudo documentado, a delegacia de crimes raciais enviou um relatório para o Ministério Público tomar as providências cabíveis. Como Daniel Correa ainda não ofereceu queixa-crime contra Cândido Lopes, o processo está arquivado em cartório. Há um prazo de seis meses correndo. Se o vigilante não se manifestar, nada ocorrerá. E, no máximo, será um caso de injúria -mas não de racismo. Texto Anterior: Juiz queria manter pena Próximo Texto: Na delegacia, 'racismo' quase sempre é injúria Índice |
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