São Paulo, domingo, 25 de junho de 1995 |
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Em Defesa do Mestiço
MARILENE FELINTO
O erro do IBGE tem sido insistir em classificar como “pardos” os morenos (ou mestiços) brasileiros. O órgão usa a terminologia desde 1940. De início, servia apenas para controle interno, para classificar todos aqueles que, no quesito cor/raça do Censo, não se identificavam com as categorias apresentadas (branca, amarela e preta). A partir de 1960, “pardo” passou a ser opção de raça/cor no formulário do Censo. O mestiço, encurralado entre cores de pele que não correspondem à sua -além de parda, opta-se hoje entre branca, preta, amarela ou indígena- muitas vezes faz um x na branca, para fugir da “parda”’. É acusado de racista. Mas que alguém responda, então, pelo infeliz: a pele morena é mais negra ou mais branca? Por acaso essa pergunta faz sentido? Não faz. O IBGE, cheio de boa vontade, resolveu respondê-la, só que da pior maneira possível. “Pardo”, em português brasileiro, tem carga semântica negativa. Significa “de cor entre o branco e o preto”, mas também “de um branco sujo, duvidoso”, segundo o dicionário Aurélio. Ninguém quer ser identificado com essa palavra horrorosa, de conotação racista, ariana, o “branco sujo duvidoso”. A pesquisa do Datafolha mostra que apenas 6% dos entrevistados se autodefiniram como pardos, enquanto a grande maioria, 46%, se apresentou como moreno, em suas diversas gradações. A pesquisa intercensitária (PNDA) realizada pelo IBGE em 1976 -em que o quesito raça/cor foi formulado de maneira aberta pela primeira vez- tem resultado idêntico: “moreno” foi a palavra mais mencionada nas respostas. A solução óbvia seria portanto substituir, no formulário do Censo, “pardo” por “moreno”, ou qualquer outro termo com que a população se identifique. O argumento do IBGE de que seria impossível a apuração se se escolhesse “moreno”, por conta das diversas gradações adicionadas à palavra (claro, escuro, etc.), não convence ninguém. Soa a preguiça política. Parece que o Censo é feito por brancos para brancos. A esmagadora maioria de brasileiros, a dos mestiços, é relegada ao “saco de gatos”, ou “de lixo” dos pardos, conforme definiu a demógrafa Valéria da Motta Leite. Não será tão impossível assim aplicar uma metodologia a um termo que a população escolheu. Se ainda se duvida da importância de uma palavra, que se consultem filólogos e linguistas -já que não se consulta o povo. É preciso notar também que em nenhuma das pesquisas em questão aqui, os entrevistados responderam que são “afro-brasileiros”, como querem certas tendências dos movimentos negros identificar a raça e seus descendentes. Importada dos Estados Unidos, a expressão não encontra ressonância entre brasileiros. A África só é aqui enquanto Pelourinho, capoeira e berimbau. O resto é Brasil, nas suas peculiaridades únicas. E Brasil não é África. É preciso identificar o mestiço como mestiço. Se ele não marca um x na cor preta, é porque sua pele não é preta. Ou somos todos cegos? Pele não é questão de consciência. Pele é pele. É simples assim. Paciência se os negros são minoria no país. Paciência. Os mestiços não têm obrigação -nem moral nem histórica- de mudar a cor de sua pele em favor de uma suposta “conscientização” de qualquer raça, negra ou branca. Na verdade, essa tendência a querer que o mestiço de negro com branco se autodefina como negro (por uma questão de consciência) é, por um lado, discriminatória: os brancos estariam afastando de sí, tudo o que não é puro, ariano; por outro, revela a postura autoritária dos movimentos negros brasileiros, que, perdidos em discutir picuinhas como a sexualidade de Zumbi -ou o valor da constrangedora indenização “reparadora” a ser recebida por tataranetos de escravos- querem arregimentar trouxas para sua luta equivocada. Mestiço não é negro, muito menos branco. É mestiço, e é assim que deve ser tratado, como mestiço, com identidade própria, mescla de uma raça com outra. Ou então que se altere logo o critério de classificação de raça/cor no Brasil, que se siga de vez o critério americano, racista na sua essência. Afinal, o IBGE não distingue cor de raça. Do técnico ao pesquisador, ninguém sabe direito que terminologia usar. Os textos e discursos dos especialistas nos assuntos estão cheios de exemplos da mistura e da utilização indiscriminada desses termos. Nos Estados Unidos, “o divisor de águas é mais claro”, diz a demógrafa Elza Berquó. Trata-se de uma sociedade racista, em que praticamente não houve miscigenação, em que “a questão não é a cor da pele, mas o sangue. A pessoa pode ter um fenótipo branco, mas será sempre negra se tiver genótipo negro, ou seja, sangue negro. São concepcões completamente diferentes”. Seria bom que no Censo do ano 2.000, o mestiço brasileiro assinalasse sob protesto o quesito raça/cor do formulário: substituisse pardo por moreno ou mulato, se não for consultado sobre sua própria cor, sua questão de pele. Texto Anterior: `Não sou negro, sou marrom bombom' Próximo Texto: 70% dos negros estão empregados, mas a metade ganha até R$ 200 Índice |
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