São Paulo, domingo, 25 de junho de 1995
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Pesquisa reforça preconceito, diz geógrafo

MAURICIO STYCER
DA REPORTAGEM LOCAL

Milton Santos, professor-titular de geografia humana da USP, acha que a pesquisa do Datafolha reforça a intolerância contra os negros por não definir claramente alguns conceitos fundamentais, como preconceito e discriminação.
Ex-professor da Sorbonne (Paris), Columbia (Nova York) e Dar-es-Salaam (Tanzânia), Santos, 69, é hoje uma das mais respeitadas figuras de sua área no mundo. No ano passado, recebeu na França o prêmio Vautrin Lu, o Nobel da geografia.
Santos é negro, casado com uma francesa, e pai de dois filhos.
Abaixo, trechos de entrevista à Folha feita no último dia 16:
(Maruricio Stycer)

Folha - O sr. poderia comentar números que mostram o racismo de negros contra negros?
Milton Santos - Eu não estou seguro que a Folha esteja tratando corretamente a questão. O nível de imprecisão com que a palavra ``preconceito" foi utilizada inutiliza muitos dos resultados.
Folha - Por exemplo?
Santos - Toda pesquisa. O que é admitir preconceito? Falta essa definição.
Folha - Qual o problema com a palavra ``preconceito"?
Santos - Essa palavra não quer dizer nada e quer dizer tudo. Portanto, não se presta a ser usada numa pergunta.
Folha - O sr. conhece algum termo melhor?
Santos - Não. Esse teria que ser definido melhor. A maior parte das questões colocadas servem a uma estratégia de marketing, não a um trabalho social. Essa é a minha crítica central. Admito que o jornal se interesse por marketing.
Folha - Constatar o racismo é marketing?
Santos - Não. Marketing é fazer perguntas apenas sobre o discurso e não sobre o comportamento. Estou exagerando, porque há perguntas sobre comportamento. Já estou pensando na próxima, que eu sei que a Folha vai fazer.
Folha - Quando o Datafolha pergunta se o entrevistado concorda com a frase ``Negro bom é negro de alma branca"...
Santos - Eu não vejo mais interesse nesse tipo de frase. Isso vai ajudar a resolver a questão? Temos que ultrapassar essa fase.
Folha - E ir em qual direção?
Santos - Acho que o resultado dessa pesquisa é criar outros preconceitos. Pior do que os anteriores, porque aparentemente se tornam científicos. Eu, portanto, primeiro contesto a idéia de pesquisa para testar esse tipo de questão.
Folha - O sr. não acha que essa pesquisa ajuda a tornar público algo que é subterrâneo?
Santos - Mas quase todas as perguntas repetem os preconceitos. Os que idealizaram a pesquisa não tiveram imaginação para inventar outras coisas a partir da realidade. Não houve esforço inovador. É uma pesquisa cara, dá para notar, só que vai reforçar preconceitos.
Folha - No momento em que se constata, através da pesquisa, que a maioria dos brancos brasileiros manifesta algum preconceito em relação aos negros...
Santos - Mas vocês não trabalharam isso. O trabalho pára aí, nessa constatação. Essa pesquisa é um esforço importante, mas largamente insuficiente. É uma pesquisa fundada nos preconceitos. Para saber que o brasileiro é racista não precisava fazer essa pesquisa.
Folha - Mas nunca havia sido quantificado esse racismo.
Santos - Não era necessário.
Folha - O sr. conhece algum estudo que mostre isso?
Santos - Pesquisa não é estudo. Há dezenas de teses que mostram isso. Quantificar é até pior. Porque, como não é estudo, ela prestigia o resultado que não tem obrigatoriamente validade. Faltou esse cuidado na pesquisa.
Folha - Qual a importância das comemorações dos 300 anos de Zumbi?
Santos - O centenário da Abolição, em 1988, deu lugar a comemorações, a festas, a imprensa se ocupou do assunto e depois nada. Eu tenho medo que esses 300 anos de Zumbi dêem na mesma coisa. Não dá mais para ficar só na constatação do racismo.
Folha - O que o sr. acha que é preciso fazer para sair daí?
Santos - Haveria que se encontrar um projeto no qual a cidadania limitada do negro fosse objeto de medidas objetivas. Por exemplo: Como é que eu faço para que a USP tenha mais alunos negros?
Folha - O sr. defende o chamado sistema de cotas?
Santos - Essa pergunta gera um bloqueio do debate. Porque você só tem duas formas de responder: sim ou não.
Folha - Qual seria a pergunta correta?
Santos - O que eu devo fazer para que o negro entre e permaneça na universidade? A resposta seria: com políticas compensatórias. O mundo inteiro tem políticas compensatórias de conquista social. Não me refiro aos negros.
Folha - O sr. não está falando de reparações?
Santos - A reparação é necessária. Na medida em que uma comunidade é secularmente posta à margem, a nação tem que se ocupar dela. Os negros não são integrados no Brasil. Isso é um risco para a unidade nacional.
Folha - O sr. poderia dar exemplos de medidas reparadoras concretas?
Santos - As grandes universidades brasileiras são a cada ano mais elitistas, não do ponto de vista intelectual, mas do ponto de vista sócioeconômico. É inaceitável haver uma educação para um tipo de pessoas e outra para outro tipo de pessoas. Com a saúde também. Para ficar doente e ser bem tratado no Brasil você precisa ser ministro! As políticas compensatórias servem para manter a coesão.
Folha - O sr. já viveu na França, nos EUA, no Canadá, na Tanzânia. Qual é a especificidade do racismo brasileiro?
Santos - Aqui é natural os negros serem tratados de forma subalterna. Você não tem como reclamar. Se você protesta, é visto como alguém que está perturbando o ``clima agradável" que possa existir nesse ou naquele lugar.
Folha - Aqui no seu prédio convivem, porta a porta, um elevador com placa ``social" e outro ``de serviço". O sr. nunca protestou contra isso?
Santos - Sim. Já pedi para tirarem. Nos foi dito, então, que colocássemos os empregados para comerem conosco na mesa. Uma típica confusão entre o público e o privado, que só o brasileiro faz. A nossa sociedade é bastante tranquila em relação à miséria.
Folha - Como assim?
Santos - Só no Brasil e nos EUA a exclusão aparece como algo natural. Só que nos EUA você tem iniciativas fortes para contrariar essa tendência à exclusão. O grave é que nesses dois países as diversas formas de exclusão encontram apoio da ciência.
Essa é a minha crítica à pesquisa da Folha. Ela pode ser uma contribuição para dar respaldo científico a formas de expressão da exclusão, se não for acompanhada de uma outra coisa.
Folha - O quê?
Santos - Como é que se manifesta essa vontade de excluir.
Folha - Mas isso aparece na pesquisa. A questão do casamento intraracial, dos vizinhos...
Santos - Sim. Não estou dizendo que nada está certo. Estou pedindo mais. Acho que é o momento de pedir mais.
Folha - Não sou especialista, mas há limitações nesse tipo de pesquisa quantitativa.
Santos - Também não sou. No caso do Brasil, a discussão deveria passar também pela ideologia da democracia racial, elaborada há três séculos na Bahia e que o país todo aceitou. Está na hora de agir. É nesse sentido que eu acho a palavra preconceito insuficiente. A pesquisa faz a contabilidade de algo que não foi definido.
Folha - Essa ideologia de três séculos é responsável pelo racismo de negros contra negros?
Santos - Vivendo dentro de uma sociedade bárbara, eu sou objeto dessa sociedade. Mas não usaria a palavra racismo. Não é isso. Folha - É o quê?
Santos - Sei que não é fácil. Com frequência há mais preconceito do que discriminação.
Folha - No seu contato com a comunidade negra, o que o sr. tem visto?
Santos - Há um cansaço, uma consciência de não pertencer completamente à sociedade brasileira... Prefiro fazer compras em Nova York do que em São Paulo.
Folha - O sr. é maltratado?
Santos - Olhado com desconfiança. Parece que isso faz parte do ethos (caráter peculiar a determinado povo). A grande aspiração do negro brasileiro é ser tratado como um homem comum.
Folha - Quando mais o sr. não é tratado como homem comum?
Santos - Em aviões. Os comissários só falam comigo em inglês, o que é insuportável. Há duas semanas, num avião da Varig em Paris, reclamei em português sobre o meu lugar. Ele respondeu em inglês. Eu disse: ``Não fale em inglês". Ele respondeu: ``O sr. me desculpe, mais ainda não sei falar francês." Isso é preconceito? Isso é discriminação?
Folha - O que é?
Santos - Ele não sabia que estava me chateando. Mas me chateei. Como eu posso pedir que as pessoas sejam amáveis com os negros em shopping-centers? Não tenho como pedir. Por enquanto não tem solução. Folha - O sr. acha que deveria haver alguma iniciativa do tipo Ministério do Negro?
Santos - Não. Isso seria criar um gueto. Mas creio que a questão do negro não pode mais ficar no Ministério da Cultura. Não é uma questão de cultura. Tem que ser do Ministério da Justiça. A solução é via a política.

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