São Paulo, domingo, 25 de junho de 1995
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`Preto é gente', diz absolvida por racismo

Folha Imagem

FERNANDO RODRIGUES
DA REPORTAGEM LOCAL

Quando a professora e diretora de escola estadual aposentada Maria Thereza Ferraz Ramos Féris, 59, diz que ``tem preto que é gente", não tem intenção de ser racista. E ela diz não ser racista.
Maria Thereza faz propaganda dos negros. Teve várias testemunhas negras depondo a seu favor num processo que respondeu por acusação de racismo, em 90.
Em Paulínia (120 km a noroeste de São Paulo), ela dirigia uma escola estadual. A professora Ana Augusta da Silva acusou Maria Thereza de proibi-la de entrar na escola. E, mais, de ter dito: ``Lugar de negro é na senzala".
Passados cinco anos, Maria Thereza hoje festeja sua absolvição em segunda instância. Tanto no caso da professora que a acusou como em um outro, no qual alegavam que ela teria impedido a matrícula de estudantes negros.
Magoada, Maria Thereza chora com facilidade quando é obrigada a lembrar-se do caso. ``Se eu tivesse um pouco de culpa, eu nem estaria aqui. Nem estava lhe dando bola", disse ela durante uma longa entrevista à Folha, a primeira desde que foi absolvida.
Durante duas horas e meia, Maria Thereza repetiu incontáveis vezes não ser racista, muito pelo contrário. Ainda assim, soltou frases do tipo ``gosto não se discute" (sobre gostar ou não de negros) e ``fui defendida por eles. Por incrível que pareça".
Maria Thereza é um exemplo vivo dos brasileiros que desejam ser cordiais em relação aos negros. Mas acabam escorregando em algum momento, como os 87% identificados na pesquisa do Datafolha publicada hoje.
A seguir, os principais trechos de sua entrevista:
(FR)

Folha - Quando a sra. foi condenada?
Maria Thereza - Em outubro de 1991.
Folha - Quando foi a absolvição em segunda instância?
Maria Thereza - Houve dois processos. Um no qual afirmaram que eu impedi a matrícula de alunos negros na escola. Outro porque uma professora se disse ofendida. Fui absolvida dos dois, por unanimidade, em 93 e 94, no Tribunal de Justiça de São Paulo. Nunca fui procurada pela imprensa depois de as sentenças terem sido reformadas.
Folha - Até quando a sra. continuou dirigindo a escola estadual em Paulínia?
Maria Thereza - Até o dia que teve uma passeata e os meus nervos despencaram, em janeiro de 91. Levaram escola de samba de Campinas, televisão... Eu estava para sair de casa, quando a Polícia Militar avisou que era perigoso.
Eu não merecia isso... (chorando) Se eu tivesse um pouco de culpa, eu nem estaria aqui. Nem estava lhe dando bola. Mas é uma mágoa tão grande que eu tenho de ter me enlameado...
Folha - A sra. acha que muitas pessoas no Brasil hoje não gostam de negros?
Maria Thereza - Eu acho que, assumidamente, não há ninguém. Pode ter até no íntimo. Mas, assumidamente, não.
Folha - O que acontece se uma pessoa, sem tomar uma atitude prática, disser que não gosta de negros?
Maria Thereza - É um direito que ela tem de gostar ou não gostar. Gosto não se discute.
Folha - O que poderia ser feito para que a atitude das pessoas mudasse?
Maria Thereza - Precisava uma campanha com a criança negra: para ela não ser a primeira a reconhecer. É horrível quando o negro diz: ``Ela me `xingou' de negro". Pelo amor de Deus!
Folha - Como assim?
Maria Thereza - Você está admitindo que negro é inferior. O negro não pode dizer isso.
Folha - Depois do seu processo, a sra. desenvolveu algum tipo de preconceito contra negros?
Maria Thereza - Não. Eu não poderia ter porque eu fui defendida por eles. Por incrível que pareça. Se ofereceram. Pessoa que não presta não tem cor. É cor de burro quando foge.
Folha - Como a sra. recebeu a sua sentença?
Maria Thereza - Eu levantei de madrugada, liguei a televisão e fiquei sabendo que tinha sido condenada a quatro anos de cadeia. Comecei a passar mal. Na minha cabeça, de manhã cedo o camburão ia me levar para penitenciária. Dei uma entrevista de manhã e fui direto para o hospital. Fiquei internada. Peguei infecção hospitalar e até hoje tenho problema nos rins. Depois, fiquei (em casa) com enfermeira, por sinal, preta.
Folha - Essa enfermeira sabia sobre tudo o que se passava?
Maria Thereza - Olha, eu vou dizer para o sr.: tem preto que é gente.
Folha - O que a sra. acha da frase ``se pudessem comer bem e estudar, os negros teriam sucesso em qualquer profissão"?
Maria Thereza - Claro, como qualquer ser humano. Eu acho que no momento que eu posso casar, cruzar com um negro e ter filhos, isso significa que ele é igual. Porque eu não posso casar com um macaco, com um cachorro -eu não terei filhos. Posso até ter relações sexuais, mas não ter filhos.
Folha - É o caso, hoje em dia, de as pessoas tomarem cuidado com as coisas que dizem, quando estão discutindo um branco e um negro?
Maria Thereza - Principalmente o branco. Mas precisava acabar com isso, porque gera a animosidade, a raiva. Você já viu algum português te processar? Algum judeu te processar, porque você contou uma piada? E o que tem de repertório de piadas de português burro... É isso o que eu quero: que a criança preta tenha o espírito do português. Ele não se sente, no fundo, inferior; dá risada.

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