São Paulo, domingo, 25 de junho de 1995
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Walcott filho de Ogum

por Lúcia Cristina de Barros

LÚCIA CRISTINA DE BARROS
FOTO BOB WOLFENSON

"Hoje eu decidi que vou ser difícil." Derek Walcott, 65 anos, Prêmio Nobel de Literatura em 1992, está sentado no hall de um hotel paulista. Bloquinho e caneta em mãos, escrevendo uma nova peça, o poeta e dramaturgo caribenho vai logo dizendo, com cara de poucos amigos: "Você está intimidada?". Ele caminha até o carro que o levará ao terreiro Aché Ile Obá, na zona sul da cidade, onde descobrirá seu santo: Ogum, que rege a guerra. O terreiro de candomblé, um dos maiores de São Paulo, é o único ponto que restou de um roteiro que pretendia mostrar ao poeta várias partes da cidade para discutir a mistura racial e cultural brasileira. Mas esses eram os planos antes de Walcott chegar ao Brasil e, mau-humorado -"com saudades do mar"-, trancar-se em seu quarto.
"Até agora, vi o aeroporto, o hotel e a televisão." O senhor está cansado? "Não, eu sou chato mesmo."
São quase três da tarde. Trânsito pesado. Walcott concorda em falar. Pergunta: se ele pensa que um dos grandes desafios da modernidade é a coexistência das diferenças. Resposta: "Eu penso que um dos grandes desafios da modernidade é responder a perguntas profundas no banco de trás de um táxi."
Não, isto não vai ser fácil.
Assassinato em série
Derek Walcott é um dos grandes poetas vivos da língua inglesa. Um senhor com uma leve barriguinha, de beleza discreta, tem a fala mansa e as palavras ferinas.
A disciplina do escritor ele julga que adquiriu graças ao cigarro. "Eu levantava todo dia porque pensava: vou fumar. Daí eu escrevia enquanto fumava." Quando abandonou o vício, há menos de um ano -substituindo-o por outro, "assassinato em série, especialmente de jornalistas"-, Walcott continuou escrevendo.
As cinzas da obra
Seu trabalho, porém, "deteriorou-se consideravelmente". Tanto, que Walcott diz que divide sua obra em dois períodos, o fumante e o não-fumante, "a.F. e d.F., como antes e depois de Cristo". Como o trabalho do segundo período é "ridículo, chato", ele aconselha quem for a uma livraria a perguntar ao vendedor: "esse livro é a.F. ou d.F.?", e só comprar os primeiros.
Walcott está rindo, um riso de desafio e deboche, de quem acha graça de si próprio. Preso dentro de um carro, cercado por um motorista, uma acompanhante e uma jornalista, ele está resignado a "fazer papel de escritor", coisa que detesta.
Vai dar a entrevista marcada, mas em seus termos: divertindo-se em dizer qualquer coisa que julgue poder chocar. Depois, quieto, espera por alguma reação do interlocutor. Mas o silêncio parece incômodo para esse mestre da língua, que enche o ar com mais palavras.
"Tenho sorte de viver numa pequena ilha, para onde eu posso sempre voltar", diz ele, confortável com a rotina da vida em Santa Lucia -escrever, nadar e ir para
casa faminto.
Descuido de simpatia
A ilha, localizada no arquipélago das Antilhas, é sua casa, seu tema de muitas poesias e sua saudade.
"Eu trabalho em muitos projetos simultaneamente", ele justifica, "é por isso que estou sempre tão incomodado". Bem, tinha que haver uma explicação.

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