São Paulo, domingo, 25 de junho de 1995
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Walcott filho de Ogum

LÚCIA CRISTINA DE BARROS

O "mea culpa" dura pouco. O carro se aproxima do terreiro. Pára. Antes de descer, os olhos desconfiados, Walcott atira: "Mas de quem foi essa idéia ridícula de me trazer a um lugar tão clichê?" Fica sabendo que o candomblé tem importância na cultura brasileira. Entra resignado.
Mãe Sylvia, que dirige o terreiro, está em festa. É com evidente prazer que ela recebe Walcott em sua sala principal, explica o significado das várias imagens no templo, das roupas que os devotos envergam, e então leva o poeta à sala onde joga búzios para identificar seu santo.
Num pedaço de papel, ela pede a Walcott que escreva seu nome e data de nascimento. Derek Walcott, 23 de janeiro de 1930. Não é possível! A repórter também é de 23 de janeiro! Ele não acredita, quer ver os documentos. Com a carteira de identidade da sua vítima em mãos, Walcott ouve Mãe Sylvia descrevê-lo: "Olha só, ele também tem mediunidade. É bravo! Gosta de tudo correto. Parece tranquilo, mas pode virar de uma hora para outra."
Filho de Ogum e tendo Iemanjá como seu segundo orixá, Walcott é descrito como "um lutador, um homem que abre caminhos e luta pelo próximo". Walcott agradece a honra de ter sido recebido no terreiro. Não quer fazer perguntas. Sai apressado.
De volta ao banco de trás do táxi. O poeta não quer continuar a entrevista imediatamente. Silêncio.
Mera coincidência
Quando as palavras retornam, Walcott fala da peça em que está trabalhando no momento, junto do cantor Paul Simon. "É uma história entre Porto Rico e Nova York, sobre um assassinato cometido por uma gangue de adolescentes nos anos 50." Na peça há uma cena crucial, em que a mãe de um jovem vai ao equivalente caribenho do candomblé, chamado santeria. Lá, a mãe de santo joga búzios para prever o futuro do rapaz. Qualquer semelhança com o que aconteceu com Walcott no terreiro é mesmo mera coincidência. Ele se rende: "É impressionante... Passar você mesmo pela experiência produz uma sensação estranha. Para mim foi uma sorte." Conta que vai reescrever a cena.
Enfim o tráfego se mexe. O poeta está cismado: encontrou alguém, fora seu irmão gêmeo, que nasceu no mesmo dia em que ele -"como você ousa? Só grandes homens podem nascer nesse dia"-, e que ainda por cima tem o nome de sua ilha e passa pela experiência de sua personagem. "Não acredito em previsões ou coincidências", diz. Mas ali estamos, uma coincidência atrás da outra: "O que faremos a respeito disso?" Documentos de novo, por favor. RG, CIC, carteirinha do clube. Não se conforma. Decreta: "Para mim, você é minha irmã gêmea."
Caretas e canelas
Trânsito lento. A acompanhante de Walcott está preocupada: teme que o atraso irrite o poeta e ele desista das fotos. Que nada: dali a pouco Walcott vai posar feliz, fazer caretas e mostrar a canela fina.
Ainda no carro, a conversa já flui melhor. Por trás do homem que odeia fazer papel de escritor parece espreitar o escritor de versos inesquecíveis, o pintor que na intimidade registra paisagens.
"Que rua é essa?" A Paulista, uma das principais avenidas de São Paulo, cuja história remonta aos tempos dos barões do café. Walcott vê a casa antiga pintada de um rosa forte que ostenta na fachada o M amarelo do MacDonald's. Grita: "Meu Deus! O que é isso?! As pessoas não se revoltam?!" Comenta a destruição, conta que no Caribe o mesmo acontece. Fala de história e tradição, poesia e dor. Volta sempre à data de nascimento.
Razoavelmente suportável
O senhor pretende visitar alguns lugares enquanto está aqui ou só ficar em seu quarto no hotel? Surpresa: Walcott tem uma gargalhada gostosa. "Você nasceu no mesmo dia em que eu. Tem as mesmas atitudes. Eu vou visitar o Brasil e ficar no meu quarto de hotel -esse é o tipo de coisa que eu diria." Ele emenda: "E porque você se chama Lúcia, e porque nasceu no dia 23 de janeiro, e porque você foi razoavelmente suportável, pode me chamar de Derek." Estende a honra à sua acompanhante: "Não quero mais saber de sr. Walcott por aqui".

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